Dia: 22 de abril de 2017

Mutreta com os Bondes…

Agonias da atualidade onde as “maracutaias, picaretagens e malandragens”, produzem corrupção, desvios e todo tipo de transações ilegais, envolvendo políticos, corporações, instituições públicas, etc., revelam somas que já se aproximam do PIB de alguns países, não parece ser uma situação da modernidade, embora ela contribua para sua existência e no tamanho.

Há certamente problema sócio-cultural na questão, e a própria história do país apresenta alguns casos notórios destes escândalos. Um desses casos se tornou famoso, pois reúne exatamente o oportunismo de alguns em benefício próprio sobrepujando o benefício de muitos.

Bondes elétricos de São Paulo, início marcado por mutretas e muito dinheiro e favores nas mãos de poucos.

Aconteceu há 120 anos, onde dois espertalhões ganharam rios de dinheiro ao repassar para a Light a concessão do serviço do bondes elétricos na cidade de São Paulo.

Em 15 de junho de 1897, dois oportunistas, o comendador brasileiro Antônio Augusto de Sousa e o italiano Francisco Antônio Gualco, fizeram um “bom negócio”. Por influência política do comendador, conseguiram obter da Câmara Municipal de São Paulo a concessão do serviço de viação elétrica por um período de 40 anos.

Estava estabelecida a brecha para a Light, que os nacionalistas de plantão apelidariam no futuro de polvo canadense, penetrar na Capital paulista para estabelecer o monopólio da geração e distribuição de energia e dos transportes urbanos por tração elétrica.

São Paulo tinha a necessidade de modernizar o seu transporte urbano e implantar usinas hidrelétricas para poder dar um grande salto no seu processo de industrialização, pois o serviço de eletricidade já existia em outras cidades do País.

São Paulo ainda uma cidade pequena, às vésperas do século 20, os bondes ainda eram puxados por burros, um símbolo da precariedade e obsolescência do transporte público. Precisava eletrifica-los.

A causa, portanto, era nobre, mas a forma como foi feita essa concessão de serviços públicos demonstra como os republicanos recém-chegados ao poder, se premiavam mutuamente. Gualco e Souza, que obviamente nunca teriam capital para tocar um empreendimento de tal porte, só estavam interessados em encher seus bolsos agindo como intermediários de um negócio milionário. O primeiro necessitava da influência política do comendador para poder se intrometer em algo que não lhe dizia respeito, ou seja, envolver-se em negócios alheios, dentro da administração pública da cidade, ao passo que Souza dependia de um sócio para viabilizar o empreendimento no Canadá e daí tirarem proveito milionário da questão tão urgente para a cidade.

Gualco, que era capitão da Marinha italiana e um homem muito esperto para negócios, foi convencido em 1896 a vir a São Paulo estudar de que forma poderia se dar conta do empreendimento, que desde 1895 vinha sendo analisado pelo comendador. Este, por sua vez, tinha parentesco com a poderosa família Campos, dona de um mar de pés de café no Estado. Era sogro de Carlos de Campos, que exercia o cargo de secretário da Justiça do governo Campos Sales e, depois, seria eleito presidente do Estado de São Paulo, exercendo o mandato a partir de 1924 e morrendo antes de cumprir todo o seu período, em 1927.

Garantida a concessão, Gualco tratou de se mandar para o Canadá, para tratar da parte técnica, da qual o comendador Sousa nada entendia, e providenciar contratos visando reunir recursos financeiros para a estruturação da companhia, surgida em função do ato de concessão dos serviços pela Câmara Municipal.

Em decorrência desses preparativos, ainda em 1897 veio ao Brasil o engenheiro americano Frederick Stark Pearson, que desenvolvera grandes projetos hidrelétricos nos Estados Unidos, México e Canadá. 

Pearson percebeu a importância que São Paulo viria a ter em breve, já que a cidade estava em franca expansão e cada vez mais necessitada de um sistema de transporte coletivo de tração elétrica e, antes de mais nada, da própria energia elétrica. Fez os primeiros estudos para implantar o empreendimento e, de volta aos Estados Unidos, procurou atrair financiamentos. Ao mesmo tempo, Pearson orientou Sousa e Gualco para que conseguissem uma ampliação da concessão inicial para novas linhas e franquias para a produção e distribuição de energia elétrica. Sousa trabalhou nesse sentido e ficou aguardando a oportunidade para vender as concessões ao capital estrangeiro.

No Canadá, Pearson conseguiu atrair um grupo de capitalistas daquele país, como James Gunn e William Mackenzie, presidente da Canadian Northem Railway. Esse grupo fundou, em 7 de abril de 1899, a The São Paulo Railway Light and Power Company Limited, com sede em Toronto, ficando Pearson como consultor técnico da empresa. A carta-patente foi expedida pela rainha Vitória, do Reino Unido, já que o Canadá era protetorado inglês.

Carlos de Campos com emprego garantido pelo favor prestado ao sogro

A autorização para que a empresa operasse no Brasil foi assinada em 17 de julho do mesmo ano pelo então Presidente da República, Campos Sales.

Em 28 de setembro, Gualco e o comendador Sousa finalmente conseguiram concretizar a maracutaia, assinando a escritura pela qual transferiram as concessões e privilégios ao capital internacional. O preço da venda tornou-se segredo de estado mas certamente era uma grande “bolada” considerando o padrão monetário da época.

Quanto a Carlos de Campos, foi premiado pelo favor que fez ao seu sogro, pois se tomou o primeiro advogado da Light.

Em Toronto, no dia 25 de junho de 1899, a razão social da empresa foi alterada, substituindo-se a palavra Railway por Tramway, o mesmo acontecendo na filial do Brasil. A alteração ocorreu pelo fato de existir no Brasil, desde 1867, a San Paulo Railway Co. Ltd., ou a Companhia Inglesa, como era chamada popularmente, que implantou a estratégica ferrovia Santos-Jundiaí. Com a alteração, a Light deixava claro que não tinha intenção de entrar no setor do transporte ferroviário de longo curso.

Menos de um ano depois, em 7 de maio, o primeiro bonde elétrico correu em São Paulo. Coube ao presidente do Estado, Francisco de Paula Rodrigues Alves, acionar os dínamos da usina provisória, a vapor, que a Light construíra na rua São Caetano. Meia hora depois, o primeiro veículo tracionado a eletricidade saía do depósito de bondes da alameda Barão de Limeira, no Campos Elíseos, dirigido pelo próprio superintendente da empresa, Robert Brown. Percorreu toda a primeira linha, da Barra Funda a Santa Ifigênia, com ponto final no largo São Bento. A bordo, Rodrigues Alves, o prefeito Antônio Prado, secretários de Estado, políticos…


O sistema de transporte por bondes em SP, nasceu com uma maracutaia e durante sua existência por 69 anos viveu sempre acuado por interesses de toda a ordem. Próximo ao término do contrato de concessão em 1941 a Light já demonstrada desinteresse e já não investia nada nos bondes, por conta de pressões nacionalistas e dos outros interesses mencionados. Foi obrigada a operar até 1946 por determinação federal e a partir dai bondes e ônibus foram estatizados pela CMTC, marcando então o início da morte dos bondes, que sobreviveram precariamente até 1968, com os mesmos bondes que foram herdados da Light. Esta total falta de investimentos tornou os bondes ineficientes para aguentar a demanda pelo crescimento enorme da cidade, como mostra este vídeo, lotados, sem segurança, e de manutenção precária caracterizado pelo comportamento administrativo estatal. 


Como é possível concluir, todos os ingredientes da mutreta, como dinheiro, negociatas, corporações, políticos e instituições da época encheram os bolsos dos dois oportunistas, e beneficiando mais alguns que ajudaram a concretização dos negócios, como Carlos de Campos. Grande semelhança com os momentos que vivemos hoje, não ?


Bibliografia/Fontes:

  • Imagem do Bonde dos Operários – Guilherme Gaensly, Instituto Moreira Salles
  • Video: MarioFoxLog
  • Santos , João Marcelo – Os operários dos bondes elétricos: trabalho, violência e estigmatização, Revista Mundos do Trabalh/ANPUH – Florianópolis,SC – Julho   2010
  • Alves, Odair Rodrigues – Um bonde chamado mutreta, JÁ/Diário Popular #32, 07/1997 – São Paulo
  • Cosenza , Apoena C.- Gonçalves ,Marcelo – Concagh , Tiago Antônio Bosi – Light na década de 1920: urbanização e contradições na cidade de São Paulo.

Updated: 09/11/2018 — 8:39 pm