Cimento, Queixadas e uma greve de 7 anos…

Tudo começou quando uma linha férrea que ligava Perus-Pirapora, foi concluída por volta de 1914, passando a transportar calcário produzido no bairro do Gato Preto (área que na época pertencia ao Município de Santana de Parnaíba), em direção a estação de Perus um dos vários bairros de subúrbios de São Paulo e que também transportava operários.

A história do bairro de Perus é típica da história de SP, que tem início com a expansão do centro para as áreas mais remotas que ainda não haviam sido desbravadas, pois até 1867, o bairro de Perus não passava de uma vila distante do Distrito da Freguesia do Ó. Com o grande cenário do café, Perus ganhou uma linha férrea, a São Paulo Railway, que foi determinante no desenvolvimento do bairro. Hoje, como CPTM ela utiliza os trens na então Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.

Se o café foi o responsável pelo crescimento para São Paulo e para o bairro de Perus no século XX, a inauguração da linha de trem, em 1867, trazendo toda aquela gente, foi responsável também pela identidade do bairro, contudo foi uma pequena estrada de ferro, a Perus – Pirapora (EFPP), que tira o bairro de anonimato e desperta o interesse de estrangeiros pelo espaço. Os trilhos nunca chegaram a Pirapora, mas o percurso era o suficiente para levar pedra calcária de Cajamar até Perus, onde abriu-se caminho para a construção da primeira fábrica de grande porte de cimento que se tem na história do Brasil: a Companhia de Cimento Portland Perus, conhecida como Fábrica de Cimento de Perus.

A Companhia foi inaugurada em 1924, quando foi encomendada as primeiras máquinas para a indústria e que em abril de 1925, todas as plantas já estavam prontas, inicia-se a primeira carga de cimento cuja data remonta a 24 de abril de 1926.

A importância da Companhia foi essencial em seus anos iniciais, tornando-se a principal fonte de matéria prima para as construções de prédios, casas, indústrias, tanto para a cidade, quanto em outros estados brasileiros.

A empresa bateu recordes de produção de cimento, mas o ano de 1951 torna-se um divisor de águas, tanto da indústria do cimento como na vida dos trabalhadores. Acontece a troca de comando na Companhia, com a chegada de José João Abdalla, deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD) e Secretário do Trabalho do Governador Ademar de Barros de 1950 a 1951, líder de um extenso império industrial, bancário e agropecuário que a partir deste ano vê seus negócios crescerem ainda mais, pois passa a ser sócio majoritário da indústria cimenteira, transformando fábrica, ferrovia, pedreiras de calcário, o Sítio Santa Fé, onde hoje é o Parque Anhanguera, e terras de Cajamar em parte integrante de suas riquezas e de seu império.

Talvez pelo gigantismo deste império, suas fragilidades de gestão começaram a aparecer, sendo apelidado de mau patrão, não fazendo adequadamente as manutenções e aprimoramentos, que motivava inúmeras paralisações e impactos profundos na produção e segurança dos trabalhadores. Esta fama de mal patrão foi instituída pelo jornal O Estado de S. Paulo, que em seus artigos constantemente documentava a difícil relação entre Abdalla e os seus operários.

A turbulenta relação entre funcionários e a direção da empresa, motivaram muitas manifestações e greves, entre as quais a que durou 7 anos (1962 a 1969)

A turbulenta relação entre funcionários e a direção da empresa, motivaram muitas manifestações e greves, entre as quais a que durou 7 anos (1962 a 1969)

Com todo este cenário ruim, tanto para com a fábrica, como com os empregados, abriu-se um caminho para a organização dos trabalhadores em sindicato, para reivindicação dos direitos trabalhistas, nascendo portanto “Os Queixadas”, termo tirado do ruído de porcos selvagens que se reuniam em grupos para se defender.

Com a degradação da situação, uma greve de trabalhadores da fábrica de Perus foi realizada, seguindo influencias e conceitos pregados por Gandhi e Luther King, do uso da não violência na resolução de conflitos. Manifestações, greves de fome e assembleias substituíam as formas tradicionais de luta, baseadas na violência tanto física, quanto a psicológica e a verbal.

No início de 1962, quando o grande grupo de sindicalistas de Perus optou pelo conflito pacifista para conseguir suas reivindicações, não imaginava que estava fazendo história. A greve, que duraria sete anos, foi umas das pioneiras do uso do conceito de Gandhi no Brasil, ou seja, foi unindo a tática e a ideologia que aqueles homens simples e de vários lugares do interior do Brasil, aplicaram o método pelo qual Mahatma Ghandi ficou conhecido mundialmente ao conseguir a independência indiana, expulsando os ingleses em 1947 e de mesma forma como foi o método conduzido por Martin Luther King, durante a luta pelos direitos civis dos norte-americanos.

Em 14 de maio de 1962, sem resposta do conglomerado, as quatro empresas da Família Abdalla entram em greve, junto ao acordo de que ninguém voltaria ao trabalho até que todos os pedidos fossem atendidos. Mas, ao passar de 32 dias, todos aqueles que estavam de comum acordo, voltaram ao trabalho, exceto os Queixadas da Perus. Com isso, o grupo do Perus se organiza e passa a pedir a desapropriação da fábrica, pelo não cumprimento de acordos trabalhistas estabelecidos com a gestão em 1959 e 1960.

O movimento dos Queixadas marcou durante anos a fio os protestos contra as más condições de trabalho e ambientais contra os proprietários da empresa, a família Abdalla

A evolução da situação culminou em sete de agosto de 1962, quando o jornal O Estado de S. Paulo publicou o parecer de juristas a favor da desapropriação ao lado de um manifesto dos sindicalistas intitulado As razões da justa greve da Perus, que trazia reinvindicações como: o pagamento de 5% do salário, que estava retido desde 1960 (dinheiro que era para o loteamento de casas de operários, no total de 17 milhões da moeda da época); pagamento do prêmio coletivo acordado em 1961, pagamento de 10% da taxa de insalubridade; registro de 100 trabalhadores que trabalhavam nos eucaliptos, contratação de nova mão-de-obra, pagamento de horas de espera pelo pagamento e antecipação de 20% do salários dos trabalhadores da indústria Carioca.

Com a promessa da antecipação de 30% do salário a todos os trabalhadores que furassem a greve, no dia 21 de agosto do mesmo ano cem ex-grevistas, junto a outros trabalhadores trazidos por Abdalla, entraram na fábrica de cimento e “estouram” (param) a greve.

Quando a grande greve começou não só a Fábrica de Cimento Portland Perus, como outras três fábricas do grupo Abdalla – Usina Miranda (Pirajuí/SP), Tecelagem Japy (Jundiaí/SP), Fábrica de Papel Carioca (Jundiaí/SP) e Copase (Companhia Paulista de Celulose, em Cajamar/SP) – paralisaram seus serviços, totalizando 3.500 trabalhadores insatisfeitos com as condições de trabalho e Juntos enviaram um ofício a Abdalla reivindicando melhores condições trabalhistas.

E depois de quatro meses do início da greve, foi acordado em assembleia que os trabalhadores deveriam tirar uma nova carteira de trabalho (a primeira estava presa na justiça) e procurar outros empregos, até que a questão fosse resolvida judicialmente.

Com o passar dos anos, a greve também foi tomando outras formas. Os piquetes praticamente acabaram. Os protestos, agora, eram passeatas. As assembleias, a melhor forma de manter a constância dos encontros. Se o Queixada não podia ir por causa do emprego, ia a mulher com os filhos nos braços, realçando a importância das mulheres nessa tão longa greve.


No período de concessão aos empresários canadenses, a Portland Perus viveu sua glória em produção e resultados, mas bastou passar para as mãos nacionais por conta do fim da concessão, um declínio se iniciou, e hoje os moradores do bairro, tentam transformar esta história num centro cultural e de outros serviços.


E por sete anos houveram assembleias quase semanais, e muitos altos e baixos. Certa vez a fábrica quase foi encampada pelo governador Carvalho Pinto. Mas, mas no fim não deu em nada e a luta trabalhista continuou até 1969 quando terminou a grave com algumas conquistas ganhas.

Influente e “poderoso” Abdalla também interveio com o comércio local para que não vendessem mais aos grevistas. Naquele tempo, os comerciantes de Perus não usavam sequer máquina de registro. E, claro, que entre tantos fregueses, muitos destes também eram da fábrica de cimento.

Os comerciantes sempre foram os grandes cabos eleitorais de Abdalla. Foi o início de tempos difíceis em Perus. De um lado, os Queixadas, lutando por seus direitos a todo custo e com toda razão. De outro, uma população que vivia direta e indiretamente do pó de cimento, que movimentava e aquecia não só os fornos da fábrica, mas a economia do próprio local.

Antes dos Queixadas se reestabelecer, muita gente passou necessidade pra valer, teve gente que chegou a se matar. No meio da greve-guerra, operários morriam de fome, miséria, tristeza, descaso. Famílias divididas entre os que guerreavam, chamados Queixadas, e aqueles que, com seus próprios motivos, furaram o maior movimento grevista do Brasil, os Pelegos.

Para driblar o cerco de fome, os Queixadas conseguiram receber doações de toda São Paulo e de outros estados. Recebiam mantimentos dos governadores do Rio Grande do Sul, do Paraná e também o apoio de D. Aniger Melilo, bispo de Piracicaba, que publicou um apelo no jornal Última Hora, em 28 de julho de 1972.

Na atualidade, existe o “Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus” formado pelas principais lideranças do bairro, assim como estudantes, professores, universitários e demais ativistas que lutam em prol da utilização do espaço, atualmente degradado pela ação do tempo.

As organizações e movimentos sociais do bairro que hoje integram o movimento são a ONG Agendes, Associação dos Aposentados de Perus, Associação dos Queixadas (antigo sindicato da fábrica), Coletivo Universidade Colaborativa, Curso Pré-Vestibular do Sindicato de Cimento de Perus, Sindicato de Cimento de Perus, Comunidade Cultural Quilombaque, Sociedade Amigos do Bairro de Perus (SADIP), e as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s).

Os programas universitários que fazem parte do movimento são o Núcleo de Estudos da Paisagem do Laboratório Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanisno da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Oficina Desenvolvimento Local e Paisagem, Programa de Educação Tutoriada da História da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP), Programa de Educação Tutorial (PET – USP), e Projeto Coruja.


A greve dos 7 anos deixou marcas profundas, contudo o bairro de Perus tem em sua história a fábrica de cimento como um dos mais expressivos acontecimentos na formação do bairro. Várias organizações tentam junto aos órgãos oficiais, transformar a área da fábrica e o que lá restou, num centro cultural e de eventos para o bairro e para a cidade de SP.


Bibliografia/Fontes:

  • Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus
  • Robson Camargo (vídeo p/of)
  • BlogMural (vídeo p/of)
  • Nelson Camargo – Acervo imagens
  • ©Antena Paulista – globo.tv
  • Entre Pelegos e Queixadas – Prólogo, Livre Leve Livro
  • Ansara, Soraia – O legado da greve do Perus, CADERNOS CERU – 2009

greve7anos

 

Updated: 08/03/2015 — 3:54 pm

3 Comments

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  1. Luiz excelente artigo.
    Se o amigo me permite um reparo no texto do 7o. parágrafo foi grafado “mal patrão” que eu acredito que deveria ser “mau patrão” (adjetivo).
    Um grande abraço e parabéns por resgatar esse material.
    Carlos Tadeu Furquim
    ———————————————————————————-
    by netleland:
    Furquim !
    Já corrigido (é o efeito da madrugada…..hehhehe).
    Muito obrigado pelo comentário e considerações.
    Um grande abraço a vc. e a todos por aí.

    Luiz Amaral

  2. Jose Rubens de Paiva Reno

    Amaral,
    Gostei muito desta sua publicação.
    Pena que a maioria dos Brasileiros não são leitores e interessados nas histórias do desenvolvimento deste país e por isto ficam sempre sendo pobres protagonistas, instrumentos da exploração dos conglomerados financeiros neste e em outros países.
    Como uma indústria deste porte, com um produto tão importante para o desenvolvimento pôde ter tido problemas?
    Engraçado que tudo parece ter piorado nos anos 60 para cá.
    Parabéns por nos dar este belo trabalho.
    Um forte abraço, José Rubens

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