Em 1916, pelo menos 452 pessoas morreram quando o navio Príncipe de Astúrias bateu num rochedo e afundou na costa de Ilhabela

Ilhabela é um dos cartões postais do Litoral Noite do Estado de São Paulo.

Distante 7 quilômetros do continente, a ilha tem 340 quilômetros quadrados de área  cobertos, em boa parte, por trechos intocados da  Mata  Atlântica e conta com 36 praias e mais de 300 cachoeiras, que fazem a festa dos turistas. O que poucos sabem é que ao redor da paradisíaca ilha está o maior cemitério de navios de toda a costa brasileira.

Foram mais de cem naufrágios registrados desde 1894. O maior deles ganhou repercussão até no hemisfério Norte, ainda traumatizado pelas 1.513 vitimas fatais do Titanic, que em 15 de abril de 1912, durante sua viagem inauguração, bateu num iceberg e desapareceu sob as águas geladas da costa do Canadá. Menos de quatro anos depois, na madrugada de 5 de março de 1916, os brasileiros tiveram drama semelhante quando o navio espanhol Príncipe de Astúrias se chocou com rochedos ao Sudeste de Ilhabela e afundou em poucos minutos, matando 452 das 600 pessoas que estariam a bordo. Há suspeitas, contudo, de que o navio transportava aproximadamente 1.500 imigrantes clandestinos, o que elevaria o número de mortos para a casa de 2 mil.

Foi um horror cinematográfico. Não faltaram tempestade, raios despencando do céu e cerração no momento em que o navio foi de encontro a uma ilhota rochosa, no local denominado Ponta do Boi. O mais estranho é que na Ponta do Boi existia um farol, cuja luz, que se projetava a cada dez minutos numa distância de três milhas, não foi percebida por ninguém, a não ser no momento em que ocorreu o desastre, durante a madrugada.

Pertencente à Companhia de Vapores Pinillos, Isquierdo, de Cádiz, o Príncipe de Astúrias zarpou em 16 de fevereiro de Barcelona, na Espanha, para sua última viagem. Deveria chegar ao porto de Santos naquele 5 de março, domingo de Carnaval, partindo no mesmo dia rumo a Montevidéu e, depois, Buenos Aires. Lançado ao mar em 30 de abril de 1914, o navio tinha 150,8 metros de comprimento por 19,1 de largura, e capacidade para 1 .770 passageiros, sendo considerado um dos transatlânticos mais modernos de sua época.

Por conta disso, seu trágico destino causou perplexidade.

Segundo depoimentos de tripulantes que se salvaram, só havia uma explicação para o desastre: as intensas descargas elétricas na atmosfera teriam deslocado ligeiramente a agulha da bússola, provocando um pequeno mas fatal erro no curso do transatlântico. Esse erro se foi realmente o que aconteceu, desviou o navio para as proximidades da costa Sudeste de Ilhabela. O comandante do navio, capitão José Lotina, era um lobo do mar cauteloso e conhecia bem a costa brasileira, mas por várias vezes manifestara preocupação em navegar por aquelas águas. Quando avistou os rochedos naquela madrugada. gritou:" vapor para trás!". Foi inútil.

 

O choque com a Porta o Boi  ocorreu às 4hl5, quando havia um nevoeiro muito denso,de acordo  com o médico de borde Francisco Zapata. que consegui se salvar. A maioria dos passageiros dormia nos camarotes, com as portas trancadas, e poucos perceberam o tranco e o ruído provocado pelo impacto, que abriu um rasgo de 40 metros no casco. Zapata ouviu o barulho e,  assustado  correu para o corredor.

Ao abrir a  porta da cabine, viu passar correndo  o capitão Lotina, a que perguntou o que estava acontecendo: “Meu filho, estamos perdidos! Pobre gente!  Gritou o comandante, que, desesperado  se suicidou com um tiro, logo em seguida ao choque.

Encarregado do telégrafo comunicou o desastre por quatro vezes , segundo o doutor Zapata.

Na quinta,  a água invadiu o local.

O Príncipe de Astúrias submergiu menos cinco minutos  após o impacto. Antes, ouviram-se estalidos e, logo em seguida, a primeira explosão das máquinas, que abriu o navio da popa à proa.

Segundos  depois, uma nova  explosão  fez desaparecer as duas partes do navio espanhol sob as águas arrastando centenas de pessoas e uma carga preciosa: estátuas  de bronze que completariam o monumento em homenagem ao Centenário da Independência da Argentina, bancado pela  comunidade espanhola residente no país vizinho.

Quem dormia nos  seus camarotes  viu a morte chegar sem compreender o que estava acontecendo. Das pessoas que estavam acordadas e tiveram tempo de pular nas águas, algumas morreram, outras boiaram, às vezes segurando-se em algum pedaço de madeira, mas a maioria conseguiu se refugiar na Ponta do Boi, onde ficou durante grande parte do domingo.

O doutor Zapata foi um dos primeiros a tentar deixar o navio. Chegou a descer um bote salva-vidas, mas o mar violento jogou a pequena embarcação contra o navio. Ele, então, se atirou ao mar, já contundido no ombro e braço esquerdos. Caiu na água e segurou-se numa porta de cabine.

Em meio ao desespero dos que se debatiam nas ondas, tripulantes procuravam botes. Só foi encontrado um, que passou a ser comandado pelo segundo oficial Rufino Onzain. Como remadores, es­colheu maquinistas, mari­nheiros e o ajudante do doutor Zapata, o estudante de medicina Salogaray.

 A ele devo a vida, porque reconheceu a minha voz quando gritei ao avistar o bote salva-vidas. Havia uma hora que me achava agarrado à porta da cabine,  afirmou Zapata, de­pois de ser resgatado.

Socorro - O dia amanheceu e começou o sofrimento dos sobreviventes que conseguiram chegar à ilhota da Ponta do Boi, torturados pelo sol e a sede. Logo após o choque do Príncipe de Astúrias, passava pelas proximidades um navio,  de bandeira brasileira ou dinamarquesa, segundo depoimentos  que ignorou os sinais de socorro dos náufragos e prosseguiu em sua rota.

Por sorte, algumas horas depois, passou pelas proximidades o navio francês Vega, que navegava rumo a Santos. Seu comandante, o capitão de longo curso Auguste Poli, disse que por volta das quatro horas da madrugada de sábado para domingo também enfrentara forte vento, chuva e cerração. A visibilidade melhorou às 8h20, quando foi avistado o farol da Ponta do Boi. Seis milhas depois, ao meio-dia, o capitão avistou destroços e mandou parar as máquinas. Depois, avistou um pranchão, sobre o qual estavam dois homens. Baixou um escaler e os recolheu. Ficou, então, sabendo do que ocorrera.

Logo depois foram recolhidos mais dois náufragos, agarrados também a um pedaço de madeira. Em seguida, Poli  avistou um bote, com o auxílio de um binóculo. Então mandou lançar ao mar todos os escaleres do seu navio, só ficando a bordo ele e o timoneiro. No total, conseguiram resgatar, na Ponta do Boi e no mar, 139 pessoas, dentre elas três mulheres e duas crianças,   maior parte feridas e seminuas. As buscas foram encerradas às 18h30, quando não havia mais sinais de náufragos. O Vega, então, prosseguiu em sua rota, rumo a Santos, onde chegou na manhã do dia 7, com os sobreviventes.

Os feridos foram atendidos na Santa Casa santista. As autoridades começaram, então, a enviar aos seus destinos os passageiros já recuperados ou que não haviam sofrido lesões. No dia 9, o navio espanhol Satrustegui recebeu a bordo 43 dos náufragos.

Uma família inteira morreu na catástrofe: o uruguaio Agnel  Ibargurem, sua mulher, duas filhas e o sogro. O diplomata americano C.F. Dickmann teve melhor sorte, mas ficou bastante ferido. O único brasileiro a bordo do Príncipe de Astúrias era José Martins Viana, estudante de engenharia, que retornava da Suíça. Ele era gaúcho, tinha 18 anos e ia desembarcar em Buenos Aires, de onde pretendia se dirigir à sua cidade natal, Santana do Livramento. Quando o navio afundou, se agarrou em uma tábua. Acabou desmaiando e foi salvo por uma jovem, Marina Vidal, que o arrastou para a ilhota da Ponta do Boi.

A região onde ocorreu a tragédia ainda foi vasculhada pelo navio-faroleiro Tenente Lameyer, que não encontrou quaisquer sinais de outros sobreviventes. Alguns cadáveres apareceram em Ubatuba, nas praias Grande  e das Toninhas. No dia 9, foram encontrados os corpos de quatro homens e duas mulheres. Todos foram atacados por tubarões e estavam terrivelmente mutilados, sem pernas ou braços, um até sem a cabeça.


Cemitério de navios

A tragédia do transatlântico Príncipe de Astúrias foi apenas um  entre os muitos acidentes que já ocorreram em Ilhabela, cujas águas são conhecidas como o maior cemitério de navios da costa brasileira. Não existem números oficiais, mas acredita-se que mais de cem embarcações entre navios, veleiros e pesqueiros já tenham ido a pique nos perigosos costões da ilha por motivos os mais diversos de ondas enormes, com mais de cinco metros de altura, a ventos fortes e densos nevoeiros.

O primeiro naufrágio registrado na região foi o do navio inglês vela-vapor Dart. em 1894. Perdido em meio a uma forte cerração, ele encalhou nas pedras de Itaboca por causa da total falta de visibilidade.

Pertencente à Casa Real Britânica, a embarcação, de apenas dois anos. acabou afundando.

Na primeira década do século 20, os naufrágios pipocaram. Em 1905, dois vapores brasileiros foram para o fundo do mar, o Vitória, que submergiu na laje do Araçá próximo a São Sebastião, e o Atílio, que se chocou com o veleiro Alttanir na Ponta da Pirabura. No ano seguinte, foi a vez do vapor francês France em 1906, que teve o casco rasgado depois que sua bússola foi afetada pelo magnetismo das pedras da ponta da Piraçununga.

Tempos depois, dois acidentes tiveram lances pitorescos envolvendo os náufragos. Em 1908, o navio de passageiros inglês Velasquez, que fazia a linha Buenos Aires - Nova Ior, que, foi socorrido pelo rebocador Milton depois que bateu e encalhou nos costões da Ponta da Sela, devido à agitação do mar. Alguns passageiros nadaram para a costa e acabaram  por ficar na ilha, encantados com suas belezas naturais: outros simplesmente se perderam nas matas.

Em 21 de março do ano seguinte, 21 sobreviventes do cargueiro britânico Wathor, que  naufragou  na Ponta de Sepetiba,  ficaram perdidos por mais de uma semana nas matas da ilha, sem comunicação e alimento.

Nem os navios militares escapavam das águas traiçoeiras da região. Em 1913, numa noite de tempestade, o rebocador Guarani, da Marinha de guerra, chocou-se violentamente contra o vapor brasileiro Borborema,  próximo à Ponta do Boi. Outra trombada foi registrada em 1920, quando uma forte cerração colocou o navio brasileiro Teresina e o veleiro Inglês San Janeco em rota de colisão, na Ponta de Itapecerica. No mesmo ano o veleiro alemão Almirante Siegmund  bateu contra as pedras da costeira do Borrifos, afundando rapidamente.

Em 1921 foi a vez de mais dois navios brasileiros, o Aymoré e o Tritão, naufragarem  na Ponta do Ribeirão.

Durante a Segunda Guerra Mundial, ficou ainda mais perigoso navegar naquela região. Tanto é que duas embarcações  teriam  sido torpedeadas por  submarinos  alemães: o navio norte-americano Eliuhud Washburne, que afundou próximo à Ponta do Boi, atingido pelo submarino alemão U-513; e o navio brasileiro Campos, vítima de um ataque do submarino U-170

A partir dos anos 40 e 50, com a progressiva introdução dos radares nos  navios, os índices de acidentes caíram  sensivelmente. Tanto é que o último naufrágio de que se tem  notícia nas costas de Ilhabela data de 1971, quando o Ucrânia, um pesqueiro de alto mar de bandeira brasileira foi  jogado sobre os costões dos Frades, durante um  temporal


Créditos/Agradecimentos:

Odair Rodrigues Alves

Revista Já - Edição no.29 (25/05/1997)

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