Há 55 anos, naufragava  em Ubatuba último dos 18 navios brasileiros afundados por submarinos alemães na costa do País

Aquela tinha tudo para ser uma viagem tranquila. Comanda­do pelo experiente capitão Mário Amaral Gama, o navio mercante Campos zarpou do porto do Rio de Janeiro em 22 de outubro de 1943 com destino ao Sul do País, levando a bordo um carregamento de carvão. O planeta estava mer­gulhado na Segunda Guerra Mundial e, durante o ano de 42 e o início de 43, os mares nacionais andavam perigo­sos, como  provavam os 17 na­vios brasileiros afundados por submarinos da Alemanha nazista. Havia dois meses, entretanto, que os torpedos de Hitler não faziam estragos na costa, razão pela qual os 56 tripulantes estavam relativamente sossegados.

Desde que assumiu o comando do  Campos, o capitão Gama teve de aprender a conviver com a má fama da embarcação, conhecida como navio fantasma. Pertencente ao Lloyd Brasileiro, o navio era um dos mais antigos da frota no País e durante a década de 20 fora utilizado para transportar presos políticos para a região de Clevelândia.

Muitos desses passageiros involuntários, que participaram de revoluções que culminaram com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930, morreram a bordo, vítimas de tortura. Por conta desses sacrifícios, pipocavam pelos portos histórias de assombrações que teimavam em assus­tar quem viajava no  Campos.

Velho lobo do mar, Gama achava que tudo isso não passava de invencionice. Sua confiança no Campos era tanta que ele decidiu não entrar num comboio de navios e nem mesmo pedir proteção à Força Aérea Brasi­leira (FAB), que então destacava aviões de guerra para acompanhar as embarcações pela costa do País. Na verdade, o comandante estava mais preocupado com o mau tempo que se desenhava no horizonte. Não tinha idéia de que sua missão seria interrompida, tragicamente, horas depois.

Na manhã seguinte, quando já navegava pela costa do Estado de São Paulo, o Campos teve sua viagem atrapalhada por forte chuva e denso nevoeiro. Gama não se alterou: passou a madrugada na ponte de comando e, quando o céu começou a clarear, foi para sua cabine. Deu uma cochilada e, por volta das 8h daquele sábado, já se preparava para reassumir seu posto. Foi quando uma forte explosão sacudiu o navio. Um torpedo havia atingido em cheio a proa do Campos. Era o início do caos.

Gama avaliou as avarias e logo concluiu que o navio estava condenado. Enquanto isso, os desesperados marinheiros, que corriam de um lado para outro, tentando salvar suas vidas, cometiam um grave erro: esqueceram se de desligar as máquinas. Vinte minutos depois, o submarino U-170, sob o comando de Gunther Pfeffer, voltou à carga e desferiu o golpe de misericórdia, disparando outro projétil, que atingiu o casco  do Campos.

A explosão arremessou longe um bote salva-vidas que ainda não fora baixado às águas. Seus ocupantes tentaram escapar nadando, mas o forte redemoinho causado pela submersão do navio os atraía para as hélices, que permaneciam girando. Alguns foram destroçados, juntamente com o bote. Como a chuva piorara e o nevoeiro se tornava ainda mais intenso, o salvamento dos homens que estavam no mar se tornou impossível. Náufragos que estavam a bordo de um dos botes avistaram um marinheiro debatendo-se nas águas. Conseguiram resgatar, ainda com vida, Manoel Rodrigues Torres, mas o rapaz, de 24 anos, tivera suas pernas decepadas e morreu algumas horas mais tarde. Exaustos, sem comida e água, os tripulantes do Campos vagaram um dia inteiro até serem içados pelo iate Vésper. Levados para Santos, todos fizeram questão de homenagear o colega morto com um sepultamento digno, num cemitério da cidade.

Dois dias depois da tragédia, o outro bote que resistira às explosões aportou em São Sebastião, no Litoral Norte, trazendo a bordo o comandante Gama e mais 17 sobreviventes. Último a abandonar o navio, ele perdeu 12 tripulantes. Por uma infeliz ironia, o navio-fantasma brasileiro foi o único sucesso alcançado pelo U-170, que encerrou sua carreira em maio de 45.

Rota de colisão

Desde o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o Brasil tentou de todas as maneiras manter-se em cima do muro. Razões não faltavam para isso, pois o programa de governo de Getúlio Vargas, que se tornara ditador dois anos antes, tinha muitos pontos em comum com os governos autoritários da Alemanha, Itália e Japão, as nações do Eixo, que declararam guerra ao mundo. Essa simpatia, contudo, era contida pelos americanos, que entraram no conflito em 1941, após serem atacados pelos japoneses, e certamente não tolerariam o Brasil apoiando o lado contrário.

A tática verde-amarela começou a fazer água em 18 de maio de 42, quando o navio Comandan­te Lyra, com 52 tripulantes, foi atingido por torpedos do submarino italiano Barbarigo. Embora na época Getúlio já acenasse com a possibilidade de dar apoio irrestrito aos Aliados, entre eles os Estados Unidos, foram precisos outros 11 ataques e mais 135 mortes para que o Brasil, em 31 de agosto de 1942, declarasse guerra ao Eixo.

A partir daí, o Governo iniciou sua campanha anti submarino. Com um empréstimo americano de U$ 200 milhões de dólares, comprou material bélico, investiu em bases aéreas e promoveu cursos de especialização para seus militares. Um ano depois, os ataques alemães cessaram e, consequentemente, as precauções acabaram relaxadas. Foi apostando neste ilusório "armistício" que o Campos seguiu seu caminho até deparar com o U-170.

Avião Arará usado para atacar os submarinos alemães

Antes que Vargas tomasse uma posição definitiva contra o Eixo, 629 pessoas morreram em navios brasileiros afundados por submarinos alemães e italianos na costa do País. Depois, foram registradas mais 173 mortes até o fim da guerra. Além destas, morreram mais 155 pessoas em embarcações de bandeira nacional torpedeadas em águas internacionais e de outros países, principalmente nos EUA. Somando-se as vítimas fatais da Marinha de Guerra chega-se ao total de 1.449 mortos em barcos nacionais.

"Fiquei arrasado durante uma palestra quando um major-brigadeiro perguntou-me se os submarinos da Segunda Guerra tinham autonomia para atravessar o Atlântico", conta o ex-piloto da FAB Ivo Gastaldoni, de 80 anos, que participou do combate aos submarinos do Eixo no litoral brasileiro. Depois de constatar a ignorância generalizada sobre esses ataques, ele resolveu escrever o livro Memórias de Um Piloto de Patrulha (Ed. Papéis e Cópias), já em sua segunda edição.

Submarino Alemão próximo a Ilha Bela sendo abordado pelo avião brasileiro Arará

Tubarões de aço

Só a nata da marinha alemã era recrutada para os submarinos, conhecidos como U-Boat. E não poderia ser diferente, pois passar meses no interior desses tubarões de aço não era para qualquer um. Os modelos mais utilizados tinham 75 metros de comprimento e 6,5 metros de largura. Além do extenuante trabalho, a tripulação dividia os reduzidos espaços com motores a diesel, elétricos, geradores, acumuladores, torpedos e beliches.

A higiene passava longe. O ar que se respirava era uma incômoda mistura de vapores de combustíveis, mofo, suor e o fétido odor das latrinas, que geralmente estavam carregadas. Tomar banho era um luxo que, quando acontecia, era na base da água salgada e de canequinha. Para alguns historiadores, o mal-estar generalizado que tomava conta das tripulações desses navios foi o principal motivo que levou o governo alemão a reduzir as longas missões mar adentro, tão comuns no início da Segunda Guerra

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Submarino alemão navegando pelas águas do litoral paulista

Campanha da FAB contra os submarinos alemães no litoral brasileiro

Todas as embarcações abatidas, por modelo de submarinos alemães em todo o litoral brasileiro

Créditos/Agradecimentos: Luca Fernandes, Revista JÁ - 19/07/1998

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