Bondes em São Paulo: A agonia do adeus !

Aposentados há 42 anos na Capital, os bondes são apontados como solução para o trânsito caótico da maior cidade do Pais

 

Estavam todos lá: crianças, jovens, idosos, pobres, ricos. São Paulo parou às 19h50 daquele 27 de março de 1968 para assistir ao adeus dos bondes elétricos. Doze deles se enfileiraram em frente ao Instituto Biológico, na Vila Mariana, para percorrer os derradeiros 31 quilômetros rumo a Santo Amaro, depois de 68 anos de serviço os prestados à população.

A despedida reuniu quase 5 mil pessoas, teve direito a banda, fogos e, como parte da trilha sonora, a uma paródia da tradicional canção de passagem de ano: "Adeus bonde velho, feliz Ano Novo...". No meio do trajeto, a viagem foi interrompida por uma mesa, coloca­da sobre os trilhos para que as autoridades — entre elas o prefeito da cidade, o brigadeiro José Roberto Faria Lima, e o governador do Estado, Roberto de Abreu Sodré -- brindassem com champanhe. Havia um clima festivo, sim, pois os poderosos de plantão acreditavam que os bondes eram coisa do passado, símbolos de um país atrasado e não do Brasil potência sonhado pela ditadura militar. A pantomima ufanista, contudo, durou pouco: mais à frente, em Campo Limpo, cerca de 50 freiras se postaram ao lado da linha e começaram a balançar lenços brancos. As lágrimas rolaram pelos rostos dos passageiros menos ilustres e pedestres mas num volume muito menor do que atingiria se pudessem adivinhar o caos em que se transformaria o trânsito da Capital anos depois daquele adeus.

Saudosismo? Nada disso. Em seu auge, na década de 40, o sistema de bondes em São Paulo chegou a contar com quase 500 quilômetros de trilhos — número que supera em mais de seis vezes os 47,1 quilômetros das linhas do Metrô somados aos 35 quilômetros de corredores exclusivos de ônibus, e 600 veículos que transportavam 38 milhões de passageiros por mês numa cidade com 1,3 milhão de habitantes. Se comparado ao martírio diário dos paulistanos no trânsito, o tempo gasto nas viagens era dos mais razoáveis: o percurso do Bom Retiro até a Barra Funda podia ser feito em 24 minutos. Já a viagem do Centro até a Penha ou Santo Amaro não demorava mais do que 40 minutos.

É verdade que a frota de veículos com motores a explosão era muito menor na Capital cerca de 164 mil, em 1960, contra os atuais 6 milhões, mas esse salto foi consequência do sucateamento do transporte público na maior metrópole do Brasil.

Os congestionamentos que chegaram a ser apontados pelo ex-prefeito Paulo Maluf  como um sintoma da pujança de São Paulo, embora causem à cidade um prejuízo anual estimado em R$ 1,37 bilhão, seguiram no mesmo ritmo, pulando de 40 para 120 quilômetros diários, desde o início da década. "O transporte coletivo saiu da agenda dos governantes. O País optou por uma industrialização a curto prazo e escolheu o automóvel como ponta de lança desse processo", diz Ayrton Camargo e Silva, secretário executivo da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) naquele distante 1998.

A mudança teve início no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956 -1961), que prometeu ao eleitorado 50 anos de desenvolvimento em apenas cinco de mandato, com ênfase especial na industrialização e geração de empregos.

Para atingir esse objetivo, atraiu grandes montadoras estrangeiras  casos  da Volkswagen, Ford e General Motors,  e deu prioridade à construção de vias asfaltadas. A teia de interesses em torno da indústria automobilística estava formada e os prefeitos de São Paulo passaram a abrir ruas e avenidas para ganhar pontos junto ao dono do automóvel, ignorando uma conta primária: cada bonde tinha capacidade para transportar confortavelmente até 150 pessoas, ao passo que os ônibus con­vencionais levavam de início apenas 25 e hoje carregam ( o verbo é mais que apropriado) 80 passagei­ros. E mais: um único bon­de poderia retirar das ruas, grosso modo, 100 carros.

Cálculos igualmente simples demonstram que um usuário padrão na Capital perde nada menos que 22,5 dias úteis por ano dentro de ônibus, tomando-se por base informações da São Paulo Transporte (SPTrans)  de que os 5,7 milhões de passageiros do sistema gastam uma hora e meia por dia no deslocamento entre a casa e o trabalho. E não poderia ser diferente. Afinal, a velocidade média  dos ônibus, que respondem por 70% do transporte coletivo na Capital, não supera atualmente a marca de 14 km/h nos horários de pico , sete quilômetros a menos do que no início da década de 80. Os velhos bondinhos? Atingiam até 80 km/h e rodavam em torno de 30 km/h, na média.

Sucateamento - Os políticos, justiça seja feita, não foram os únicos responsáveis por esse descarrilamento histórico. Depois de faturar pesado com a compra dos direitos de exploração do serviço de bondes elétricos de dois picaretas, no final do século passado, a multinacional canadense Light propôs à Prefeitura, em 1926, a construção de linhas subterrâneas e elevadas, uma espécie de Metrô que seria implementado com a compra de 600 coletivos. Para isso, a empresa pedia a duplicação da tarifa, de 200 réis, que era a mesma desde 1872, quando começaram a circular os bondes puxados por burros.

A proposta era boa, desde que fossem discutidos os valores colocados na mesa mas foi recusada. Resultado: a Light deixou o transporte público de lado e passou a dar maior atenção a um negócio mais lucrativo, a geração e distribuição de energia. Em 1945, os bondes chegaram ao auge em São Paulo, alcançando a marca de 455,7 milhões de passageiros transportados de janeiro a dezembro, mas a partir de 47 a decadência foi se acentuando ano a ano. A frota não foi mais renovada, as peças para reposição não tardaram a ser retiradas de carcaças encostadas nos pátios e os bondes começaram a quebrar, causando congestionamentos.

"Para piorar, os motoristas de ônibus eram orientados a estacionar os veículos sobre os trilhos, para sabotar o sistema. Com isso, os ônibus passaram a ser vistos como sinônimo de evolução, já que tinham bancos estofados e não estavam presos aos trilhos", conta o historiador Waldemar Corrêa Stiel, especialista em transportes coletivos. "Na guerra por espaço, não foi o bonde que atrapalhou o trânsito. Foi o trânsito que atrapalhou o bonde

A desativação do sistema começou discretamente no final da década de 30, com a retirada dos trilhos dos bairros de Santa Cecília, Campos Elíseos e Higienópolis, quando a Light começou a encostar o corpo. A partir de 1960, veio a agonia, patrocinada pela Prefeitura. "Quem acabou com o bonde não teve visão de estadista e nem pensou em uma cidade melhor nos próximos 20 ou 30 anos", comenta Ayrton, da ANTP. "Deixou-se de lado uma tecnologia que não polui, com maior capacida­de de transporte que carros e ônibus, e que poderia fa­zer muito bem o meio campo entre Metrô e trens."

Outra vantagem é o custo-benefício. A construção de um quilômetro de via para bondes custa entre R$ 20 milhões e R$ 25 milhões e permite o transporte de 30 mil pessoas por hora. "Corredores de ônibus com a mesma extensão saem por R$ 10 milhões, mas beneficiam apenas 10 mil pessoas por hora", explica Jaime Waisman, de 53 anos, professor de Transporte Público da Escola de Engenharia Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Na comparação com o metrô, que transporta 50 mil pessoas por hora e demanda investimentos de R$ 50 mi­lhões por quilômetro construído, o diferencial fica por conta do tempo da obra. "Uma linha de bondes fica pronta num prazo 40% inferior a uma de metrô", completa o professor Jaime.

Viagem no tempo: O bonde do Memorial do Imigrante faz um pequeno trajeto até o Estação Bresser do Metro, para turistas, visitantes, historiadores......

Primeiro Mundo - Claro que seria ingenuidade imaginar os camarões, como eram conhecidos os bondes fechados da Capital, devido à cor alaranjada, circulando hoje como faziam há décadas. Eles teriam de rodar em corredores exclusivos para ganhar eficiência e escapar da concorrência direta com o trânsito, como é feito em seis cidades européias. Lá, a lógica é justamente oferecer um meio de transporte rápido e confortável para.que os motoristas sejam seduzidos a deixar os carros na garagem. Conforto não falta: com 30 metros de comprimento e capacidade para 300 passageiros, muitos bondes europeus são climatizados, têm vidro fume, bilhetagem eletrônica, bancos estofados e atingem 100 km/h.

De um modo geral toda a Europa, retomou os investimentos em bondes a partir da primeira metade da década de 80, depois do susto causado pelas duas crises do petróleo, em 1973 e 79. Os europeus se deram conta de que não tinham alternativas eficientes para o modelo de transporte coletivo baseado no diesel e na gasolina. Como não haviam desativado o sistema original de bondes, montado no início do século, foi só investir na modernização dos veículos e linhas. "Na Europa, os bondes também vêm sendo utilizados na recuperação de centros históricos degradados, caso de Munique, na Alemanha.

Como não poluem, eles podem entrar nas áreas com acesso restrito aos pedestres sem causar impacto negativo", comenta Ãyrton.

Exemplos não faltam, dentro e fora da Europa. Em Bonn, na Alemanha, os bondinhos fazem integração subterrânea com o metrô no centro da cidade. Na velha Lisboa, a frota de veículos, que remontava à primeira década do século, foi renovada e a prefeitura local se prepara agora para implementar vias exclusivas. Quer mais? Em Sydney, a moderna capital da Austrália, quase 50% do transporte coletivo é feito por bondes.

A Europa e a Oceania não estão sozinhas nessa viagem. Em 1832, a cidade de Nova York, nos Estados Unidos, tornou-se a primeira do planeta a contar com um serviço de bondes puxados por animais. Desde aquela época, e já se vão quase 182 anos, os americanos mantêm-se fiéis a esse meio de transporte. Os bondes de São Francisco são figurinhas carimbadas em diversas produções de Hollywood. No Sul da Califórnia, o destaque fica para a moderna composição que liga San Diego à fronteira com o México.

Quem não tem saldo bancário suficiente para pegar um avião rumo ao hemisfério Norte dispõe de poucas opções para apreciar a insuspeita modernidade dos bondes. O jeito é ir até o Museu dos Transportes Públicos, na avenida Cruzeiro do Sul, em Santana, ou dar um pulo, aos domingos, na estação Bresser do Metrô. Lá é o ponto de partida de uma linha que vai até o Memorial do Imigrante, na rua Visconde de Parnaíba, Brás. São apenas 800 metros percorridos, das 11h às 17h, por um bondinho que recebeu motor turbinado de Tempra, com injeção eletrônica, e sistema de freios de uma caminhonete C-20. Fabricado em 1912, ele tem capacidade para transportar 35 pes­soas sentadas e voltou a rodar em 5 de abril 1998.

Nas fotos a seguir como a europa recuperou e tornou o bonde seu meio de tranporte publico em excelencia:modernos e  confortáveis:

Berlin

 

Budapest

Colonia (Alemanha)

 

Helsinki

Lisboa

Londres

Milão

Munique

Oslo

Strasbourg (França)

Viena

Zurique


Veja também:

A história dos Bondes em São Paulo

Bonde: uma Invenção Brasileira

Um Bonde chamado Mutreta

Créditos/Agradecimentos: Gonzalo Navarrete, Revista JÁ No.80(17/05/1998), Larissa Squeff, SPTrans, Museu dos Transportes

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