Um bonde chamado MUTRETA


Há 100 anos, dois espertalhões ganharam rios de dinheiro ao repassar para a Light a concessão do serviço do bondes elétricos na Capital

ODAIR RODRIGUES ALVES

Em 15 de junho de 1897, dois espertalhões, o comendador brasileiro Antônio Augusto de Sousa e o italiano Francisco Antônio Gualco, fizeram um "bom negócio": por influência política do primeiro, conseguiram obter da Câmara Municipal de São Paulo a concessão do serviço de viação elétrica por um período de 40 anos. Estava estabelecida a brecha para a Light, que brasileiros nacionalistas apelidariam no futuro de polvo canadense, penetrar na Capital paulista para estabelecer o monopólio da geração e distribuição de energia e dos transportes urbanos por tração elétrica.

São Paulo precisava modernizar o seu transporte urbano e implantar usinas hidrelétricas para poder dar um grande salto no seu processo de industrialização. O serviço de eletricidade já existia em várias cidades do País e os bondes por tração elétrica apareceram no Rio de Janeiro, então capital federal, em 1892, por iniciativa da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico, que servia a população do bairro do Flamengo e regiões próximas. Já em São Paulo, às vésperas do século 20, os bondes, puxados por burros, eram um símbolo da precariedade e obsolescência do transporte público.

A causa, portanto, era nobre, mas a forma como foi feita essa concessão de serviços públicos demonstra como os republicanos recém-chegados ao poder, se premiavam mutuamente. Gualco e Souza, que obviamente nunca teriam capital para tocar um empreendimento de tal porte, só estavam interessados em encher seus bolsos agindo como intermediários de um negócio milionário. O primeiro necessitava da influência política do comendador para poder se imiscuir na administração pública da cidade, ao passo que Souza dependia de um sócio para viabilizar o empreendimento no Canadá.

Gualco, que era capitão da Marinha italiana e um homem muito esperto para negócios, foi convencido em 1896 a vir a São Paulo estudar de que forma poderia se dar conta do empreendimento, que desde 1895 vinha sendo analisado pelo comendador. Este, por sua vez, tinha parentesco com a poderosa família Campos, dona de um mar de pés de café. Era sogro de Carlos de Campos, que exercia o cargo de secretário da Justiça do governo Campos Sales e, depois, seria eleito presidente do Estado, exercendo o mandato a partir de 1924 e morrendo antes de cumprir todo o seu período, em 1927.

Garantida a concessão, Gualco tratou de se mandar para o Canadá, para tratar da parte técnica -- da qual o comendador Sousa nada entendia -- e dos contratos visando reunir recursos financeiros para a estruturação da companhia, surgida em função do ato de concessão dos serviços pela Câmara Municipal. Em decorrência desses preparativos, ainda em 1897 veio ao Brasil o engenheiro americano Frederick Stark Pearson, que desenvolvera grandes projetos hidrelétricos nos Estados Unidos, México e Canadá.

Pearson percebeu a importância que São Paulo viria a ter em breve, já que a cidade estava em franca expansão e cada vez mais necessitada de um sistema de transporte coletivo de tração elétrica e, antes de mais nada, da própria energia. Fez os primeiros estudos para implantar o empreendimento e, de volta aos Estados Unidos, procurou atrair financiamentos. Ao mesmo tempo, Pearson orientou Sousa e Gualco para que conseguissem uma ampliação da concessão inicial para novas linhas e franquias para a produção e distribuição de energia elétrica. Sousa trabalhou nesse sentido e ficou aguardando a oportunidade para vender as concessões ao capital estrangeiro.

No Canadá, Pearson conseguiu atrair um grupo de capitalistas daquele domínio inglês, como James Gunn e William Mackenzie, presidente da Canadian Northem Railway. Esse grupo fundou, em 7 de abril de 1899, a The São Paulo Railway Light and Power Company Limited, com sede em Toronto, ficando Pearson como consultor técnico da empresa. A carta-patente foi expedida pela rainha Vitória, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda.

A autorização para que a empresa operasse no Brasil foi assinada em 17 de julho do mesmo ano pelo então Presidente da República, Campos Sales.

Em 28 de setembro, Gualco e o comendador Sousa finalmente conseguiram concretizar a maracutaia, assinando a escritura pela qual transferiram as concessões e privilégios ao capital internacional. O preço da venda tornou-se segredo de Estado. Quanto a Carlos de Campos, foi premiado pelo favor que fez ao seu sogro, pois se tomou o primeiro advogado da Light.

Em Toronto, no dia 25 de junho de 1899, a razão social da empresa foi alterada, substituindo-se a palavra Railway por Tramway, o mesmo acontecendo na filial do Brasil. A alteração ocorreu pelo fato de existir no Brasil, desde 1867, a San Paulo Railway Co. Ltd., ou a Companhia Inglesa, como era chamada pelo povo, que implantou a estratégica ferrovia Santos-Jundiaí. Com a alteração, a Light deixava claro que não tinha intenção de entrar no setor do transporte ferroviário de longo curso.

Menos de um ano depois, em 7 de maio, o primeiro bonde elétrico correu em São Paulo. Coube ao presidente do Estado, Francisco de Paula Rodrigues Alves, acionar os dínamos da usina provisória, a vapor, que a Light construíra na rua São Caetano. Meia hora depois, o primeiro veículo tracionado a eletricidade saía do depósito de bondes da alameda Barão de Limeira, em Campos Elíseos, dirigido pelo próprio superintendente da empresa, Robert Brown. Percorreu toda a primeira linha, da Barra Funda a Santa Ifigênia, com ponto final no largo São Bento. A bordo, RodriguesAlves, o prefeito Antônio Prado, secretários de Estado, políticos...

(Artigo "Um bonde chamado Mutreta"  de Odair Rodrigues Alves publicado na Revista JÁ nº 32  (Diário Popular) de 15 de junho de 1997, gentilmente cedida para esta Home Page, pelo seu Editor Dario Palhares).

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