DETROIT PAULISTA

De Santos Dumont aos dias de hoje, a trajetória do maior pólo automobilístico da América Latina

Pioneiro: Claudio Bonadei e família no primeiro carro contruido no Brasil

Em 1891, o vapor Portugal atracou no porto de Santos trazendo em seus porões uma novidade que, em pouco tempo, iria mudar o cotidiano dos paulistas. Enquanto os parentes e amigos dos passageiros recebiam as últimas notícias da Europa, o futuro desembarcava do navio com um ruído ritmado e característico, apoiando-se sobre quatro rodas de arame e, o que era mais fantástico na época, deslocando-se sem a necessidade de uma parelha de cavalos! Tratava-se de um  pequeno  e simpático Peugeot. Quem trouxe a voiturette (carrinho) da França foi Alberto Santos Dumont, futuro Pai da Aviação. Filho do fazendeiro de café Henrique Santos Dumont, ele acompanhou o pai em uma viagem à Europa e se apaixonou pelos veículos movidos a motores de combustão interna. "Os automóveis eram muito raros em Paris em 1891 e tive de ir à usina de Valentigney para comprar minha primeira máquina, um Peugeot de rodas altas, de 3,5 cavalos de força. Daí para a frente tornei-me adepto fervoroso do automóvel. Entretive-me em estudar os seus diversos órgãos e a ação de cada um. Aprendi a consertar a máquina e quando, ao fim de sete meses, minha família voltou ao Brasil, levei comigo minha Peugeot", contou o inventor, em suas memórias.

Henrique Santos Dumont e seu Peugeot

O Peugeot ficou por muito tempo na mansão dos Dumont, na alameda Cleveland, bairro dos Campos Elíseos, mas dele não existem registros históricos suficientes para elucidar sua trajetória no País. Muitos dizem que foi devolvido à fabrica, devido a defeitos mecânicos, hipótese das mais improváveis, já que seu dono era um gênio nesse campo. Os fatos na verdade apontam para duas outras possibilidades: a venda da máquina ou seu desmonte, servindo as peças para projetos aeronáuticos.

O certo é que a família Dumont gostou da novidade. Tanto é que em 1893 Henrique  já desfilava pelo Centro da cidade a bordo de um reluzente Daimler. Cinco anos depois, outro Peugeot ganhou as ruas da Capital. Seria o terceiro automóvel a rodar por São Paulo ou o velho carro de Alberto Santos Dumont com um novo dono ao volante? Mistério...

Automóvel de Placa No. 1, do Conde Francisco Matarazzo

Como a moda estava pegando, não demorou  para que o poder público estabelecesse regras para as "carruagens sem cavalos".

Em 26 de outubro de 1900, o prefeito Álvaro Ramos promulgou a lei 493, que regulamentava o pagamento de uma taxa obrigatória pelos proprietários de automóveis. Em 1903, seu sucessor, Antônio Prado, baixou o ato 146, tornando obrigatórios o   licenciamento e a inspeção dos veículos e estabelecendo também o limite máximo de velocidade no município, 30 km/ h em áreas descampadas.

Henrique Dumont recusou-se a licenciar seu carro e, desse modo, a chapa número 1 ficou com o conde Francisco Matarazzo, que a manteve até sua morte. O primeiro condutor a ser examinado, contudo, foi Menotti Falchi, que viera da Itália no final do século 19 para dirigir, com seu irmão José, a Fábrica de Chocolates Falchi. Menotti recebeu a primeira "carta de condutor" em 1904, quando havia cerca de 83 carros registrados na Capital.

Fundo de quintal - No início do século, o automóvel era um privilégio de poucos, mas um imigrante italiano que chegou a São Paulo em 1899 quebrou esse tabu. Decidido a ter seu próprio carro, Cláudio Bonadei dedicou-se à construção daquele que é considerado o primeiro veículo nacional movido a um motor de combustão interna. Mecânico da seção de máquinas da companhia Singer, ele era um homem do povo, casado, com dois filhos e uma modesta renda mensal. Mas havia cursado Engenharia em Pádua, na Itália, o que lhe possibilitou realizar seu sonho, igualando-se aos figurões da época.

Juntando todas as suas economias, o italiano conseguiu adquirir um velho modelo francês bastante desatualizado. De posse do carro, desmontou-o e, nas horas de folga, consertou a parte mecânica e construiu uma nova carroceria. Em 1905 (ou 1908, pois os registros históricos variam conforme a fonte), o carro finalmente ficou pronto e, curiosamente, Bonadei percebeu que este não passaria pela porta de sua oficina, o que o obrigou a derrubar a parede da mesma para retirar a volturette. Finalmente, o veículo subiu a ladeira São João, entre a rua Libero Badaró e o largo do Rosário, onde o imigrante foi ovacionado pela multidão devido a seu "feito heroico". Afinal de contas, era a primeira vez que um proletário se equiparava aos poderosos da época.

Fabricar automóveis, no entanto, nunca foi uma atividade para empreendimentos de fundo de quintal. Assim, no final da primeira década do século, uma nova marca começou a ganhar terreno, abrindo vantagem em relação aos delicados modelos europeus e oferecendo ao público um veículo mais simples e com manutenção infinitamente mais barata: a Ford e seu Mo­delo T, o carro que ficaria famoso por ter "dado rodas à América". A aceitação foi tão grande que, no fim da década seguinte, Henry Ford resolveu criar uma filial de sua empresa no Brasil. Com capital inicial de US$ 25 mil, logo depois aumentado para US$ 30 mil, em 1° de maio de 1919 foram instalados uma linha de montagem de componentes importados e um escritório na rua Florêncio de Abreu, Centro da Capital. No ano seguinte, mudou-se para a praça da República e, em 1921, para a rua Sólon, no Bom Retiro

Linha da Ford: O modelo T fez história

A Fábrica da Ford no Bom Retiro

A Ford, contudo, não ficou sozinha por muito tempo. Em 1925, chegou ao País a General Motors, sua maior rival, que, com um capital inicial de ÜS$ 270 mil, se instalou na avenida Presidente Wilson, 2.315. Em setembro daquele ano, tinha início a montagem de veículos importados, inicialmente 25 carros por dia, depois 40 no ano seguinte. Em 1927, após ter montado cerca de 25 mil automóveis, a empresa passou a se dedicar à construção de uma nova fábrica, instalada em São Caetano do Sul, com área coberta de 45 mil metros quadrados. Inaugurada em 1929, a unidade possibilitou à multinacional americana montar 100 veículos por dia, e até hoje (2010), ainda utiliza esta fábrica, sendo sua sede Central no Brasil.

Linha de Montagem da GM na Av.Presidente Wilson e em São Caetano


Estradas - Com o crescimento da produção e da frota, as autoridades passaram a investir na malha rodoviária. O engenheiro Rudge Ramos se propôs a fazer a ligação rodoviária entre São Paulo e Santos, baseando-se numa picada aberta por tropeiros no século 19, o que fez Washington Luís, então secretário da Segurança Pública de São Paulo, autorizar os presos da Delegacia de Vadiagem a trabalharem na construção da estrada. Surgia o Caminho Velho do Mar, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico.

Da Secretaria da Segurança, Washington Luís, que ficou famoso pela frase "Governar é abrir estradas", pulou para o Governo do Estado. Quando concluiu seu mandato, em 1924, tinha construído 1.400 quilômetros de rodovias, deixando outros 2.500 em projetos. Dois anos depois, assumiu a Presidência da República, tendo inaugurado em sua gestão as estradas São Paulo-Rio e Rio-Petrópolis. Na época, o total de automóveis em circulação na Capital de São Paulo alcançava 43.657, mas nenhum deles estava registrado em nome do Presidente. Por ironia, Washington Luís nunca teve um automóvel e, mesmo que comprasse, não saberia dirigi-lo.

O Presidente das estradas não chegou a passar o bastão para seu sucessor, o também paulista Júlio Prestes. Em 1930, foi deposto por Getúlio Vargas, num episódio que marcou o início de um período conturbado na história do País. Um ano antes, o crash da Bolsa de Valores de Nova Iorque provocara uma retração sem precedentes na economia global. E, para piorar, a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha, em 1933, acarretou em uma escalada de hostilidades que resultou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O conflito derrubou as exportações de café, então principal fonte de divisas do Brasil, e jogou nas nuvens os preços de produtos importados, incluindo as autopeças e combustíveis. Sem opção, o Governo teve de dar um grande impulso à industrialização do País. Molas, baterias, tambores de freios, cubos de roda, pistões e muitos outros componentes antes importados passaram a ser produzidos por cerca de 12 mil fábricas paulistas. Da mesma forma, a indústria nacional viabilizou a adaptação dos motores dos veículos ao gasogênio, gás de carvão que substituiu a gasolina durante o racionamento.

O esforço de guerra criou o embrião de uma indústria de autopeças que floresceria anos mais tarde, dando suporte à instalação das grandes linhas de montagem de veículo no País. De volta à Presidência, Getúlio convidou Lúcio Meira, em 1951, para compor a Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI).

O capitão de fragata aceitou o cargo e partiu para o Exterior, em companhia de alguns industriais, com a intenção de fazer contato com empresas estrangeiras. A missão deu bons frutos: a Volkswagen aceitou o desafio e, em março de 53, se instalou no bairro do Ipiranga, Zona Sul da Capital.

O impulso definitivo veio com a posse do Presidente Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1956. Em seu governo, foi criado o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia), que atraiu outras montadoras, como a Willys Overland, Simca e Vemag. Essas fábricas transformaram a Grande São Paulo na Detroit brasileira, o equivalente tupiniquim do maior pólo da indústria automobilística americana e do mundo, em parte do século 20. A região contava naqueles medianos anos 90, com uma frota de 4 milhões de veículos e respondeu por considerável parcela da produção nacional, de 2,067 milhões de unidades em 1997. Para o bem ou para o mal, os automóveis entraram de vez nas garagens e na vida dos paulistas e dos brasileiros.

Circuito de Itapecerica

São Paulo era uma festa só em 26 de julho de 1908. Naquele domingo, foi disputada a primeira prova automobilística em território nacional, no chamado Circuito de Itapecerica. Mais de 10 mil pagantes testemunharam o evento, pagando 2 mil-réis cada. Os moradores de Embu, Itapecerica da Serra e Santo Amaro, entretanto, não precisaram desembolsar um tostão sequer, pois o traçado da corrida passava por essas localidades.

Promotor do espetáculo, o Automóvel Club de São Paulo, fundado 15 dias antes, permitiu a participação de 14 carros e duas motocicletas. O Dietrich Lorraine do piloto Jorge Haentjens era o único da categoria E,  mais de 45 hp,  e por isso foi considerado hors concours. Largou em primeiro, sendo seguido, com intervalos de 5 a 8 minutos, pelos competidores das categorias D (até 40 hp), C (20 a 30), B (8 a 9) e A, reservada às motocicletas.

O calçamento foi especialmente reforçado para a prova, cuja largada foi dada às 12h55. Em Santo Amaro, o piloto Gastão Almeida abriu uma vantagem de 5 minutos em relação aos demais concorrentes da categoria D, mas o reservatório de óleo de sua Dietrich-Lorraine caiu a 6 quilômetros da chegada. Gastão teve de tirar o pé do acelerador e foi ultrapassado pelo Fiat de Sílvio Alvares Penteado, vencedor da prova. Sílvio percorreu os 75 quilômetros do circuito em 1h30m5s, estabelecendo uma média de "incríveis" 50 km/h.

O Fait de Penteado: média de 50Km/h

Cartaz de comemoração de 100 anos da primeira corrida de automóvel da América do Sul, realizada no circuito de Itapecerica

Creditos/Agradecimentos:Rogério Ferraresi (RevistaJÁ 01/02/98), Automóvel Club de São Paulo, Automóvel Clube do Brasil.

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