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Nos anos 50, o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho chocou
os paulistanos ao passear de saiote pelo Centro da Capital
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A
estilista
inglesa Mary Quant levou a
fama, no
final
dos anos 60, mas o
verdadeiro
inventor da minissaia foi
o
arquiteto e artista
plástico Flávio Resende de Carvalho. Em
18 de outubro de 1956, ele
não só lançou
como
estreou pessoalmente sua
polêmica proposta de traje
masculino para
os trópicos: saiote
e blusa
cavada, complementadas
por
meia-calça do tipo
arrastão e sandálias.
Desfilando
em pleno Centro
de
São Paulo, enfrentou de
peito aberto, e pernas de fora,
todo o
preconceito de uma sociedade
conservadora e ainda
provinciana.
Flávio era assim, provocativo. Não
é difícil imaginar como sua atitude foi recebida
pelos
defensores da moral e dos bons
costumes
de
plantão,
já que, até aquela época, nem mesmo as mulheres
ousavam
usar saias acima do joelho.
Resultado:
quando passeava pelas ruas
da
Paulicéia,
lançando moda com sua indumentária
Verão 57, Flávio
foi chamado de
bicha, veado e travesti.
Não deu bola, pois
considerava as roupas usadas no
Brasil incompatíveis
com as
elevadas temperaturas
registradas durante a maior
parte do
ano. Para
ele, os ternos e as camisas
de manga comprida que recheavam
os
guarda-roupas masculinos eram
roupas adequadas a
países frios. Os sapatos e as meias
também mereciam
críticas, pois, argumentava,
além de serem anti-higiênicos
poderiam ser
substituídos por
sandálias, como ele mesmo
usava. O
new-look, como foi
chamada a
moda de Flávio,
chegou até a
ser mostrado em Roma,
virando notícia na
revista
americana Time. Não
ganhou
adeptos, mas não foi a
única passagem curiosa de sua vida. Longe
disso. Filho do cafeicultor Raul Resende de Carvalho e da intelectual quatrocentona Ophélia Crissiuma Carvalho, Flávio nasceu em Barra Mansa (RJ), em 10 de agosto de 1899. Bisneto do Barão de Cajuru e descendente do conde dos Arcos, sétimo vice-rei do Brasil, ele veio para a Capital paulista com 1 ano. Em 1911, aos 12, foi enviado a Paris, na França, para estudar no Liceu Janson de Sailly. Três anos mais tarde, embarcou rumo à Inglaterra, onde continuou seus estudos até 1922. Naquele
ano, retornou
para São Paulo e participou,
junto com Oswald de Andrade, Anita
Malfatti, Mário
de Andrade, Menotti
Del Picchia
e Tarsila do Amaral, entre
outros, da Semana de Arte
Moderna de 22, um divisor de águas na
história cultural
do País. Heresia
-
Embora não fosse
uma das estrelas do movimento,
Flávio encarnava mais do que
ninguém
o espírito contestatório
dos
modernistas, defensores
de uma
arte
genuinamente nacional. Em 1931, por
exemplo, saiu na procissão de Corpus Christi na
direção
contrária à
massa que acompanhava o cortejo
do corpo
do Senhor morto, de chapéu na cabeça
e peito estufado. Justificou seu comportamento, no livro Experiência
Número
2, dizendo que e
vá
"observando
o efeito ímpio
nas fisionomias
dos
crentes", mas o ato foi
recebido pela
multidão como uma heresia.
"Ele
quase
foi linchado. Teve
até de pular o muro de uma casa para
não ser morto a pauladas pelos
fiéis", conta
Lúcia
Carvalho Crissiuma,
prima de
Flávio. Aos 86 anos, ela teve oportunidade de morar na maior obra executada pelo primo como arquiteto, a casa modernista construída em Valinhos, no Interior de São Paulo, em 1929. Quando Flávio morreu em 1973, seu patrimônio foi deixado como herança para Lúcia. "Morei lá por 12 anos e a casa era parecida com o próprio Flávio: diferente e intrigante", conta, acrescentando que ele era considerado "avançado" até pela família. "Era um homem extremamente reservado, mas bastante irreverente. Todos gostavam dele, mas também nunca sabiam o que ele iria aprontar" conta. |
O Casarão de Valinhos, como é conhecido na cidade, foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), em 1982, e aguarda uma reforma. O objetivo da Prefeitura de Valinhos é transformar o local numa casa de cultura. Originalidade para isso é o que não falta, pois o imóvel, com quatro quartos, não tem janelas. "Não é uma casa prática, mas, como foi deixada para minha família, preciso cuidar dela", explica a prima. A diferença de idade entre Lúcia e Flávio era de 25 anos, razão pela qual são remotas suas lembranças do primo. "Ele era muito educado, mas nunca gostou de crianças. Lembro-me de que não podia fazer muita bagunça na casa dele."Lúcia conta que tinha tanto receio da figura de Flávio que, certa vez, quando foi dormir na casa dos tios, ficou apavorada quando ouviu o primo falando enquanto dormia. "Ele tinha uma voz grossa e sonhava em inglês. Quando começou a falar, achei que era um monstro e corri assustada para a cama de meus pais", diverte-se ela. Morte - O auge da produção artística de Flávio ocorreu nas décadas de 50 e 60. Em 1951, ele projetou cenários luminosos no Teatro Municipal para acompanhar um concerto de Camargo Guarnieri e seis anos mais tarde ganhou medalha de ouro na primeira Bienal de Artes Plásticas de Teatro. Participou da 25a. Bienal de Veneza, em 1950, e das cinco primeiras Bienais de São Paulo, tendo merecido uma sala especial em 1963. Também foi reconhecido por uma galeria de retratos de famosas personalidades nacionais e internacionais, caso de Mário de Andrade, José Lins do Rego e do poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de Literatura em 71. Mas o mais chocante de seus trabalhos foi a Série Trágica de Minha Mãe Morrendo, de 1947. Ao contrário do que se esperava de um filho que está prestes a perder a mãe vítima de câncer, Flávio não se entregou ao desespero e decidiu desenhá-la em seu leito de morte. Os desenhos ficaram famosos pela riqueza de detalhes e as circunstâncias em que foram feitos. |
Com tantas passagens inusitadas, a vida de Flávio só poderia virar livro, e dos grossos. Foi o que ocorreu em 1994, com o lançamento deFlávio de Carvalho, O Comedor de Emoções, um compêndio com 850 páginas assinado pelo jornalista e escritor J. Toledo. "Meu primeiro contato com Flávio foi um encontrão.
Estava fazendo uma matéria na9a. Bienal, em 1967, e tropecei nele", conta o jornalista, que mede 1,70m e caiu ao se chocar com o avantajado arquiteto e artista plástico, que media mais de 1,90m. "Quando soube que eu estava lá para fazer uma reportagem com ele, ficou muito envergonhado. Eraum gentleman", recorda. Depois da trombada, os dois ficaram amigos e o jornalistavisitou Flávio várias vezes na casa de Valinhos. "É uma pena que ela esteja abandonada daquele jeito. Aquela construçãofoi o marco da arquitetura modernista no Brasil."
Como arquiteto, engenheiro,artista plástico, escritor e estilista de moda Flávio de Carvalho fez história em São Paulo. Só uma vez deixou de levar um projeto adiante. Foi em meadosde 1954, quando quis fazer um filme sobre a floresta amazônica. Preocupado com o assédioque sofreria dos índios, chegou a pedir a Jânio Quadros, então governador de São Paulo, autorização para levar gás lacrimogêneo, com o objetivo de se defender dos aborígenes. Com bom humor, o governador negou o pedido e justificou: "Meucaro, acho que os índios já têm motivos suficientes para chorar." |
Demolidor de tabus
Maria e Flávio: a união mais longa do artista durou quatro anos |
Foram necessários nove anos de pesquisa e redação para Flávio de Carvalho, o Comedor de Emoções, uma coprodução das editoras Brasiliense e Unicamp, chegar às livrarias. Por ter sido amigo de Flávio, o jornalista J. Toledo teve acesso a todos os arquivos pessoais do artista, que eram generosos. "Fiquei mais de um ano selecionando só as correspondências que ele recebeu durante a vida", recorda o autor. No livro, que tem prefácio de Jorge Amado, Toledo fala das paixões, loucuras e da atividade política do polêmico arquiteto e artista plástico. Certa vez, conta ele, Flávio foi proibido de entrar no sofisticado Nacional Club, um dos principais pontos de encontro da alta burguesia paulistana, por estar sem gravata. Irônico como ele só, tirou a meia preta que usava e improvisou uma gravata borboleta. Nada demais para quem, nos anos 20, costumava combinar smoking com sandálias. "A sociedade era tão hipócrita que, com a meia no pescoço, ele pôde entrar no baile", diz o escritor. Conhecido como mulherengo, Flávio nunca se casou. Sua união mais duradoura foi com Maria Kareska, uma cantora lírica lituana, com quem morou durante quatro anos. Mas o maior escândalo na vida de Flávio foi o romance que teve com sua única filha, Sônia. Fruto de um rápido namoro com a baronesa carioca Lydia de Alencastro Graça, Sônia só foi conhecer o pai aos 17 anos. "Ela veio do Rio de Janeiro para conhecê-lo e os dois se apaixonaram", conta Toledo. Durante três anos, pai e filha tiveram uma tórrida paixão, mas, como Sônia não teve estrutura para administrar o incesto, voltou ao Rio de Janeiro. "A baronesa nunca perdoou Flávio por aquilo. Sônia teve de ser internada por muitos anos", afirma o autor. Considerado maldito pela elite da Paulicéia, Flávio não teve o reconhecimento merecido como arquiteto. "Juntamente com Gregori Warchaochik, ele foi o introdutor da arquitetura moderna no País. Poucas pessoas conseguem ver isso." Para refrescar a memória brasileira, em 1999, quando foi comemorado o centenário de Flávio de Carvalho, Toledo pretendeu reeditar o livro numa versão mais reduzida. "Espero popularizar a figura de Flávio e mostrar que seu mito ficou mais famoso que suas obras." |
Créditos/Agradecimentos: Larissa Squeff e Odair Rodrigues Alves Revista Já (Diário Popular) nº59 -21/12/1997 |
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