Mappin: a agonia de um simbolo


Com uma dívida de R$ 1,1 bilhão e sem crédito, o Mappin vai cerrar definitivamente as portas

Não há uma só panela de pressão nas prateleiras. Alguns passos adiante, a loja que se orgulhava de vender finíssimas porcelanas Rosenthal exibe apenas um jogo incompleto da Schmidt. No setor de Cinefoto, os funcionários espalharam caixas de papelão vazias pelo recinto, na tentativa de esconder dos fregueses que não restam mais do que 19 geladeiras e 30 TVs, justo na loja que, em 1950, tornou-se a pioneira na venda de televisores no País, com a importação de aparelhos americanos da marca Admiral. Mais decadente ainda é a seção de cama, mesa e banho, no quinto andar, onde toalhinhas de rosto ocupam o espaço antes reservado a cobertores, edredons e lençóis. O cenário deprimente no fuliginoso prédio da praça Ramos de Azevedo, Centro da Capital, não deixa dúvidas sobre a agonia do Mappin. De cartão-postal, point da elite e instituição histórica da cidade, a empresa enfrenta uma triste liquidação às avessas, com dívidas de R$ 1,1 bilhão.

As longas filas e o formigueiro humano agora são só lembranças. No mesmo pavimento onde estão expostas as singelas toalhinhas, o silêncio reina no outrora concorrido setor de crediário. Só é quebrado pelo choro convulsivo das caixas Luzia Santos, de 36 anos, e Raimunda Fernandes Alves, de 40, que desabam quando o repórter e o fotógrafo da Revista JÁ entram na sala. Suas lágrimas são o retrato do desânimo e da tristeza que tomou conta dos cerca de 4.150 funcionários dos 13 pontos de venda Casa Anglo Brasileira S/A, holding que controla aquela que foi a maior loja de departamentos do País. "Estamos sofrendo porque nos acostumamos com o tempo em que as pessoas nem conseguiam entrar na loja", lamenta Luzia.

É um desalento encontrado em todos os cantos do prédio da praça Ramos. Os estoques, no 11° e 12° andares, estão limpos. Ou melhor, num deles há um amontoado de entulho. "Não temos dinheiro nem para mandar retirar esse lixo", revela o vendedor Antônio Cassiano, de 64 anos, que há 44 trabalha na casa, atu­almente na venda de TVs. O fotógrafo da Revista JÁ pede que sejam acendidas as luzes, mas nem isso é possível. "Não tem. Estamos usando as lâmpadas daqui para repor as que queimam na loja", desculpa-se.

O absurdo contrasta com os tempos em que Cassiano atendia fregue­ses de famílias milionárias, como os Cunha Bueno e os Jafet. " íamos até as mansões, pegávamos as medidas dos pés e encomendávamos os finíssimos sapatos da Lotus, na Inglaterra. Depois, entregávamos os calçados aos clientes", recorda. Tudo memória. Hoje, no setor do veterano vendedor, há um cantinho onde se lê "ponta de estoque". Ali estão à venda mercadorias estragadas, coisas que nem bazares de caridade venderiam, como cafeteiras sem as jarras de vidro. Vale tudo para laçar os poucos consumidores e tentar garantir o salário do mês. Nessa toada, calculam os funcionários, o Mappin não resiste mais 10 dias. É vender o pouco que restou e abaixar as portas. Um drama que é creditado ao espírito aventureiro do empresário Ricardo Mansur, que em 96 assumiu o controle da Casa Anglo Brasileira (veja o Coveiro do Mappin). "Não acredito nesse pesadelo. O que destruiu o Mappin foi a má administração", revolta-se o despachante Vicente Guastelli Netto, de 84 anos, que começou a trabalhar na empresa em 28 de novembro de 1932. Naquela época, a casa era uma requintada loja de departamentos com o nome Mappin Stores e estava instalada no edifício da condessa Pereira Pinto, na elegante praça do Patriarca, Centro da Capital. Tudo a ver com a origem do negócio, que surgiu na Inglaterra, em 1774, e abastecia de pratarias, porcelanas, cristais e artigos finos a nobreza da então maior potência do planeta.

Programa da elite - No início deste século, a já tradicional rede abriu uma filial em Buenos Aires, onde a colônia britânica era numerosa. Logo, voltou os olhos para o Brasil. Em 1912, surgiu em São Paulo a Mappin & Webb, sociedade da família Mappin e de Henry Portlock especializada em cristais e pratarias. Com a sede consumista das famílias dos barões do café, cujos lucros eram crescentes, os sócios se juntaram a outro inglês, John Kitching, e criaram a Mappin Stores, embrião do atual Mappin. Inaugurada em 29 de novembro de 1913, no número 26 da rua XV de Novembro, em frente à irmã Mappin & Webb, a moderna loja causou furor no elegante Triângulo, formado pela XV de Novembro, São Bento e Direita, centro comercial, social, político e cultural da Capital naquele período. Foi lá, por exemplo, que a pintora Anita Malfatti fez sua primeira exposição, em 1914.

O empreendimento deu tão certo que, em 1919, o Mappin Stores teve de buscar mais espaço. O local escolhido foi o prédio da condessa, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo no espaço hoje ocupado por um edifício do Unibanco. No novo endereço, a Stores passou de 11 para 30 departamentos, com 180 funcionários. Seu interior ostentava o que havia de mais requintado em decoração, inspirado nos grandes magazines europeus. Ganhou fama, também, pelo tradicional Salão de Chá, freqüentado por milionários, políticos e intelectuais. Os idealiza-dores da Semana da Arte Moderna, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, reuniam-se lá. "Na primeira vez em que a escritora Cecília Meirelles veio a São Paulo, nós, estudantes de Direito do largo São Francisco, oferecemos um chá para ela no salão do Mappin", conta o jornalista e ex-deputado federal Israel Dias Novaes, presidente da Academia Paulista de Letras.

Ver as vitrines, fazer compras e passar pelo Salão de Chá dos ingleses era um programa da elite, de gente como o presidente Washington Luiz.

Pobre não tinha vez por lá. As lojas onde o povão era admitido exibiam uma placa: "Entrada Franca". Não era o caso do Mappin, que só veio a quebrar essa regra em 1922. Em 20 de janeiro daquele ano, um incêndio destruiu quase todo o estoque da loja, que, um mês depois, realizou uma liquidação das sobras. "Foi a primeira vez que os pobres puderam entrar no Mappin Stores para comprar mercadorias refinadas, mas só aquelas que foram chamuscadas pelo fogo", revela a historiadora Solange Peirão, uma das autoras do livro Mappin 70 Anos.

A escritora Zélia Gattai lembra bem  daquela queima de estoque. Levada pelas mãos da mãe, dona Angelina, ela entrou pela primeira vez  no Mappin quando tinha 5 anos, durante a liquidação. Filas enormes formaram-se na frente da loja, mas dona Angelina não se intimidou e levou para casa roupas finas para os filhos e chapéus, produtos aos quais se referia como "obras de arte". "Durante anos vesti as roupas do Mappin e lembro, em especial, de um chapéu cor-de-rosinha com flores do campo. Ele nunca me serviu, mas durante anos foi a minha glória", lembra a mulher do também  escritor Jorge Amado.

Mais tarde, Zélia também freqüentou o Salão de Chá. "Já mocinha, vinha a São Paulo e o salão era parada obrigatória, um primor em elegância. Aproveitava, também, para fazer minhas comprinhas." De passagem  por São Paulo, a escritora, radicada há muitos anos em Salvador, pensou em dar um pulo na loja da praça Ramos, mas acabou desistindo da idéia ao saber que quase não havia mais mercadorias expostas. "É um absurdo uma casa com essa tradição fechar suas portas. Não quero ficar triste ,pois sei, assim como os paulistanos, que isso não acontecerá", anima-se. Quem conheceu o Mappin das primeiras décadas do século, como Zélia, custa a crer no que está acontecendo. E não apenas por saudosismo, pois essas pessoas constataram, no dia-a-dia, a força da mais famosa empresa varejista de São Paulo. Tão influente que foi capaz de mudar o centro comercial da cidade, o que ocorreu em 14 de abril 1939, quando os ingleses atravessaram o viaduto do Chá, que acabara de ser concretado, e inauguraram o tradicional ponto da praça Ramos, alugado da Santa Casa de Misericórdia. O Triângulo ficou para trás e passou ser chamado, depois, de Centro Velho. A rua Barão de Itapetininga, que tangencia o prédio, virou a nova passarela da moda e da elegância. "As pessoas marcavam seus encon­tros embaixo do relógio do Mappin. Era uma loja de artigos elegantes, finos, que vinham quase todos da Europa. Ainda tenho na mente um sapato inglês, de solado reforçado, sola de borracha, que acabou virando sinônimo de São Paulo. Quem ia ao Rio com esse sapato era imediatamente identificado como paulistano", recorda o crítico de arte e professor de Teatro e Literatura da USP Décio de Almeida Prado, de 81 anos.

A mudança também não afetou o prestígio do Salão de Chá. Instalado no quarto andar, continuou a reunir a nata da sociedade, servindo até 1.700 chá -venas por dia. "O chá das 5 do Map­pin, o five o'clock tea, era uma instituição, o mais chique de São Paulo. As senhoras não o perdiam. Os rapazes não eram tão habituais, em razão do preço. Mas, em ocasiões excepcionais, estávamos lá", diz Décio. No mesmo local, funcionavam um salão para banquetes e o badalado American-Bar. "Era lá que rolava uma paquera", relembra a atriz Etty Fraser. "É por isso que dá um vazio quando a gente pensa que o Mappin pode fechar.''

Preços acessíveis - Grande parte desse fascínio das velhas gerações foi resultado da competência e arrojo dos antigos administradores da empresa. Desde a rua XV de Novembro, o Mappin sempre revolucionou. Foram seus diretores que popularizaram as liquidações, marca registrada do magazine. A exposição das peças nas vitrines foi outra idéia que deu certo. Em sua história consta ainda o primeiro desfile de moda em São Paulo, ao estilo europeu, para apresentar novas coleções, e o pioneirismo na entrega das compras em domicílio, inicialmente com carroças, depois substituídas por furgões. Novidades que logo chegavam ao conhecimento do público graças a uma propaganda ousada e criativa, como pode ser conferido nos rodapés das seis páginas desta reportagem.

 

O grande salto da empresa, no entanto, veio em 1950, quando os ingleses venderam o controle acionário para o advogado Alberto José Alves e seu filho, o negociador de café e também advogado Alberto Alves Filho. Sob o comando deste, a empresa mudou o seu perfil. "Um dia, ele estava olhando para baixo e perguntou porque as pessoas não entravam em sua loja. Pensou um pouco e mandou arrancar as portas giratórias: não queria que nada impedisse a entrada do público", conta o vendedor Antônio Cassiano. Alves Filho mandou também retirar os tapetes verdes do térreo. O elitismo cedia espaço a uma estratégia que tinha por objetivo atrair os 2,1 milhões de habitantes da cidade com produtos a preços acessíveis.

A primeira tacada foi a promoção dos aparelhos Admirali. Com forte propaganda, o Mappin convidava os consumidores a assistirem "experiências de programa de televisão" no gabinete-estúdio, sem qualquer compromisso de compra. Logo a seguir, outra idéia brilhante: "Compre hoje no Mappin e pague em dez vezes". O financiamento sem juros fez com que o lucro líquido quase dobrasse em 1951. Seis anos depois, a ruptura definitiva com o passado aristocrático: a Grande Venda da Indústria, que se repetiria por anos a fio.

Nas décadas de 60 e 70 as vendas estouraram. Foi um período marcado por fortes promoções para datas como os dias das Mães e dos Namorados e, mais tarde, pelo lançamento do crédito automático. Tempos memoráveis em que 60 mil pessoas passavam todo dia pela loja da praça Ramos, das 8h à meia-noite. Aos sábados, o número pulava para 200 mil. "O caixa principal tinha 20 empregados contando dinheiro", conta Cassiano.

Artífice de todo esse processo, Alberto Alves Filho morreu em 1982, aos 69 anos. Sua viúva, Sônia Cosette Domit Alves, entregou a gestão do negócio a um executivo, o economista Carlos Antônio Rocca. A empresa passou por um processo de expansão física, com a inauguração de diversas lojas,  no Itaim, ABC e em shopping centers, e a compra, nos anos 90, de seis pontos de venda da extinta rede Sears. O negócio continuou sólido, mas sofreu com a diversificação das gôndolas dos supermercados, que passaram a concorrer diretamente com as lojas de departamentos, e a abertura da economia brasileira, a partir de 1990, responsável pela chegada ao País de gigantes do varejo internacional, como os grupos Wall Mart e J.C. Penney, dos Estados Unidos, e Sonae, de Portugal.

Não foi a concorrência, entretanto, que derrubou o Mappin. Em 96, Cosette Alves vendeu a empresa a Ricardo Mansur, que iniciou uma série de aquisições espetaculares, incluindo a Mesbla e o Banco Crefisul. Chegou a ser apontado como Rei do Varejo, mas hoje está mais para um rei Midas com sinal invertido, ou seja, transforma tudo o que toca em sucata. Depois de acumular dívidas de R$ 1,1 bilhão, foi afastado do empreendimento. Os acionistas chamaram, então, o "socorrista" José Paulo Ferraz do Amaral, ex-presidente das Lojas Americanas e da Mesbla. Nos últimos dias, ele viveu em intermináveis reuniões, passando o chapéu em busca de recursos para repor os estoques da rede. Amaral queria levantar R$ 100 milhões junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), fundos de pensão e instituições financeiras privadas. Recebeu diversas negativas e correu contra o relógio, pois nos bastidores da Justiça comenta-se que não demora para ser decretada a falência da holding, pedida por diversos credores. "A gente reclamava do movimento intenso e agora sabe que aquela época era superlegal. Hoje (1999), quando um cliente passa no caixa, dáva vontade de pular o balcão e dar um beijo nele", diz, aos prantos, a caixa Luzia Santos.

O coveiro do Mappin

Economistas e administradores de empresas têm, com a agonia do Mappin, uma boa oportunidade para demonstrar herméticas teorias que, na verdade, podem ser resumidas em falta de visão ou pura irresponsabilidade empresarial. Não há outra explicação para a "obra" do empresário Ricardo Mansur, de 51 anos, que se tornou o coveiro de um grande negócio pilotado competentemente por Alberto Alves Filho de 1950 a 82. Depois de muito assédio, ele assumiu o controle do tradicional magazine, em 96, por US$ 25 milhões, sendo 7% à vista e o restante em três pagamentos anuais. Não parou por aí e, no ano seguinte, arrematou a endividada Mesbla. Seu fôlego começou a fraquejar.

A situação das duas empresas ficou ainda mais complicada no fim de 1998, quando Mansur tentou captar R$ 600 milhões emitindo títulos. Quebrou a cara, pois a crise da Rússia, que declarou moratória, provocou pânico no mercado internacional, levando o governo brasileiro a jogar a taxa de juros na estratosfera, com o objetivo de segurar no País recursos de investidores estrangeiros. Como a remuneração oferecida pelos papéis do empresário era muito inferior, ele só conseguiu amealhar R$ 180 milhões, dos quais R$ 120 milhões de uma empresa de seu próprio grupo. Ou seja, só R$ 60 milhões de dinheiro novo.

No primeiro trimestre de1999, veio a derrocada de Mansur. Em março, o Banco Central liquidou o Banco Crefisul, que ele adquirira em 96, e mais quatro empresas financeiras de seu conglomerado. Em abril, foi afastado do comando da Mesbla e do Mappin. Caía por terra o mito do Rei do Varejo, que, de uma simples papelaria na rua São Bento, montada em 1966, chegou a controlar um império econômico, embora de vida curta.

Ainda abalado emocionalmente pelo retumbante fracasso, segundo amigos, o empresário exilou-se por vontade própria em Londres, onde é dono de uma mansão. Seus bens no Brasil, incluindo outros dois palacetes, em São Paulo e Indaiatuba (SP), ficaram indisponíveis, por decisão do governo, com a liquidação do Crefisul. Mesmo perdendo a parada para seus credores, o que é improvável, continuará comendo e morando muito bem, ao contrário de muitos dos 9 mil funcionários da Mesbla e do Mappin.

As Campanhas do Mappin

Créditos:Agradecimentos: Antonio Carlos Silveira, Revista JÁ No.135, 06/06/1999


Veja também:

A história do Mappin

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