HISTÓRIAS DE SÃO
PAULO
(Artigo da Revista JÁ
nº.37 de 20 de Julho de 1997)
ODAIR RODRIGUES ALVES
Foi uma queima de arquivo, literalmente.
No início de novembro de 1946, a São Paulo Railway Company
(SPR), da Inglaterra, estava prestes a assinar o termo de transferência
de seu patrimônio para o Governo Federal, pois já estava vencido
o prazo de 90 anos da outorga do serviço de trens entre Santos e
Jundiaí, de acôrdo com a lei imperial 1.759, de 26 de abril
de 1856. O Ministério da Viação, entretanto, nunca
colocou as mãos nos documentos sobre a administração
da empresa, já que na madrugada de 6 de novembro daquele ano, dois
dias antes da passagem do bastão, a Estação da Luz,
onde funcionava o quartel-general da SPR, virou uma imensa fogueira.
O incêndio, o primeiro na história do prédio, começou
às 2h05 justamente nos escritórios da empresa. Às 2h45,
o relógio da estação já virara uma imensa tocha
vermelha, ruindo em seguida. O Corpo de Bombeiros foi chamado e isolou a
rua José Paulino, no trecho entre a rua Prates e a avenida Tiradentes,
mas pouco pôde fazer. As chamas encontraram pela frente material de
fácil combustão e se propagaram rapidamente, ferindo cinco
bombeiros.
O rescaldo prosseguiu até as 6 horas da manhá e precisou ser
retomado horas depois, pois na noite do dia 7 irromperam novos focos de
incêndio. Os bombeiros encontraram nas bilheterias grande quantidade
de moedas derretidas pelas chamas. O cofre que continha o dinheiro para
o pagamento dos empregados também foi achado. Ele se encontrava nos
escritórios da SPR, mas o fogo, ao queimar o piso, provocou a queda
do cofre no restaurante.
O estrago foi enorme. As chamas haviam devorado também as cabines
telefônicas, o depósito de bagagens, parte da seção
dos Correios e Telégrafos, o bar e restaurante, o serviço
de informações e todos os escritórios administrativos,
incluindo a Superintendência onde se encontravam os documentos referentes
à ferrovia.
- Só não virou cinzas
o arquivo do registro dos empregados, que estava na Contadoria Central,
na rua Senador Queirós.
Por volta das 9 horas, a Polícia Técnica iniciou os trabalhos
para descobrir as causas do incêndio, que, tudo levava a crer, fora
criminoso. O caso envolvia tantas suspeitas que o ministro da Viação,
Clóvis Pestana, determinou que uma comissão de engenheiros
de seu ministério viesse a São Paulo com o objetivo específico
de colaborar nas investigações.
Naquela manhã, os trens de carga circularam sem problemas, pois
medidas foram tomadas para facilitar o embarque de mercadorias, evitando-se
qualquer prejuízo no abastecimento das cidades servidas pela SPR.
A população, entretanto, sofreu. Aqueles que precisavam ir
a Jundiaí ou aos subúrbios ao Norte da cidade tiveram de
rumar para a Barra Funda. Já quem tinha de ir na direção
de Santos passou a embarcar no Brás. Só dois dias depois
os trens de passageiros voltaram a sair da Estação da Luz.
- Prejuízos - O vice superintendente da SPR, John Hillmann, chegou à
estação da Luz pouco depois da Polícia Técnica,
por volta das 9h30. Seu veredicto: um curto-circuito tinha causado o incêndio.
Já o chefe do Tráfego da Estação da Luz, Nicolau
Alayon, foi só preconceito ao culpar a colônia judaica pelo
ocorrido. Segundo ele, a SPR fora vítima de um atentado praticado
pelo movimento sionista, que lutava pela implantação de um
Estado judeu na Palestina, então domada pela Grã-Bretanha.
Como suas declarações foram duramente criticadas, Nicolau
lançou mão de um velho e surrado artifício: afirmou
que havia sido "mal interpretado" pela Imprensa.
No dia seguinte, 8 de novembro, enquanto o delegado de Incêndios,
Rego Freitas, entregava à Superintendência da SPR o cofre
contendo Cr$ 8 milhões, que se destinavam ao pagamento dos empregados,
uma cerimônia no gabinete do ministro Clóvis Pestana, no Rio,
marcava a transferência do patrimônio da empresa inglesa para
a União. Depois do acidente, o Ministério da Viação
chegou a divulgar uma nota informando que a data da solenidade deveria
ser adiada, para dar tempo às investigações da Policia.
Misteriosamente, entretanto, o Governo acabou voltando atrás. A
SPR ou simplesmente Inglesa, como era conhecida, passou a se chamar Estrada
de Ferro Santos a Jundiaí, vinculada à Rede Ferroviária
Federal S.A. (RFFSA).
O prejuízo causado pelo incêndio - estimado na época
entre Cr$10 milhões e Cr$40 milhões - foi assumido pelos contribuintes, pois foram dos
cofres públicos que saíram os recursos utilizados na reforma
da Estação da Luz. O prédio foi reconstruído
em 1946, respeitando-se o estilo original. No entanto, algumas alterações
foram feitas. Assim, no segundo andar, no salão central, foram colocados
grossos pilares de sustentação para mais um andar.
As investigações deram em nada, embora a Polícia tivesse
a convicção de que gente da própria SPR fora a responsável
pelo fogo. Qual o objetivo do crime? Esconder os lucros privados e os prejuízos
públicos causados por uma empresa que deteve o monopólio
do transporte ferroviário ao Porto de Santos do final do século
passado atê 1938, quando a Sorocabana, controlada pelo Governo Estadual,
implantou um ramal de Mairinque até a Baixada Santista.
Até então, as demais empresas que exploravam os serviços
de transporte sobre trilhos no Interior pagavam pesadas tarifas para que
a SPR levasse mercadorias ao litoral e trouxesse produtos estrangeiros
desembarcados no Porto de Santos. De quebra, a empresa inglesa ainda retardava
ao máximo a entrega de trilhos, locomotivas, vagões, carvão
e outros insumos necessários à expansão dos serviços
de outras ferrovias. Na verdade, a SPR não passava de um lucrativo
"funil ferroviário", que não tinha interesse algum
em estender trilhos Interior adentro para promover o desenvolvimento.
(Agradecimentos a Dario Palhares,
Editor da Revista JÁ, do Diário Popular de São Paulo,
pela gentileza em permitir a transcrição deste artigo nesta
Home Page).
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