Pablo Gamberra, argentino de Mar del Plata, reservou a longínqua 2ª. semana de Dezembro de 1997 na Capital paulista,  para conhecer a Catedral Metropolitana de São Paulo, majestosamente erguida na praça da Sé. Biólogo com carteira assinada e artista plástico nas horas vagas, ele se surpreendeu com a grandiosidade do edifício e, especialmente, com a riqueza de imagens, estátuas e altares do maior templo do catolicismo da cidade, com 111 metros de comprimento, 46 metros de largura e 100 metros de altura na fachada. A visita, inicialmente prevista para durar no máximo uma hora, tomou praticamente toda uma tarde e lhe rendeu quatro filmes de 24 poses. "Volto para a Argentina maravilhado com o que vi aqui. Sinceramente, nunca imaginei que houvesse algo dessa envergadura no Brasil", afirma.

A reação de Gamberra é comum entre aqueles que entram despretensiosamente na Catedral da Sé. É preciso ser extremamente insensível para não se surpreender com o conjunto de obras idealizado pelo arquiteto alemão Maximilian Hehl. Com um sobrenome um tanto estranho para quem desenha igrejas (a pronúncia é idêntica a hell, que significa inferno em inglês), esse ex-professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) viu sua obra ser iniciada em 1911 e entregue à população, inacabada, em 25 de janeiro de 1954, na celebração do Quarto Centenário da cidade.

Hehl queria entrar para a história com um projeto grandioso. Conseguiu cumprir seu objetivo. A igreja se divide em cinco naves, das quais três são interrompidas por um ambiente octogonal sobre o qual se eleva a cúpula. As obras de arte que a adornam são um capítulo à parte. Mais de 70 artistas do ateliê Umberto Bruni, glorioso artesão romano, trabalharam mais de 263 mil horas, durante dois anos, para elaborar as peças em mármore e bronze expostas no local. No total, as 102 estátuas e 96 baixos-relevos consumiram 154.200 quilos de mármore branco; 9.600 de mármore verde St. Denis das minas do Vale de Aosta; 74.550 de mármore amarelo de Siena das minas de Monte d'Elsa; 166.750 de mármore vermelho portassanta das minas de Caldana; 3.164 de ônix do Vale de Aosta; 4.050 de pórfiro antigo do Egito; 135 de malaquita do Congo; 25 de lazulita chilena; e 15.000 de bronze. Isso sem falar dos 30 vitrais, com 600 subdivisões e quadros.

 

Capela do santíssimo sacramento: Impressiona pela delicadeza. No altar, o tabernáculo é sustentado por quatro anjos, com os símbolos das virtudes que dispõem a Comunhão. Os baixos-relevos da parle frontal, todos em bronze, mostram a Última Ceia, o Sacrifício de Abraão, o Sacrifício de Melchisedech, a Multiplicação dos Pães e o Maná

Tradicionais famílias da Capital paulista colaboraram de forma decisiva para bancar as obras, tal era o anseio da comunidade em ver a nova Catedral concluída. A Capela do Santíssimo Sacramento, por exemplo, foi uma doação do conde Matarazzo, enquanto os dois púlpitos foram gentilezas das famílias Crespi e Silva Prado, respectivamente. O conde Lara de Toledo ofereceu a capela da pia batismal e a senhora Rudge, o trono do cardeal.

Estes e outros tesouros,casos do altar-mor e dos vitrais coloridos são facilmente localizáveis. Mas longe dos olhares de turistas, fiéis e curiosos a Catedral da Sé é só mistério, com colunas ocas e um verdadeiro labirinto de caminhos subterrâneos. Caminhar nessas passagens secretas é desafiador, principalmente porque os sacerdotes pouco sabem sobre elas. De uma das colunas ocas, por exemplo, é possível ver o interior do templo, através de pequenos nichos na parede. O ambiente escuro aumenta o mistério, já que alguns deles não têm luz. São corredores estreitos, com 60 centímetros de largura, em média, e completamente privados, ou seja: pode-se cruzar de uma extremidade a outra do prédio sem ser notado. Um deles liga as torres à sala dos cônegos, os auxiliares mais próximos do cardeal, que se reúnem uma vez por mês. "Não tenho ideia do que isso representou no passado", desconversa o padre Michelino Roberto, de 30 anos, vigário-adjunto da Catedral.

Pelo menos oficialmente ninguém tem maiores informações sobre os caminhos misteriosos da Sé. Nem mesmo os documentos encontrados recentemente, em uma das colunas ocas, ajudaram a resolver o enigma.

Convocado para analisar o material, o historiador e professor Francisco Alambert diminuiu a sede dos mais eufóricos ao relatar o que encontrou até agora. "São notas fiscais, pedidos de materiais, carteiras de trabalho dos operários, coisas des­se tipo", revela, sem esconder uma ponta de decepção. "Esperava encontrar algo que pudesse retratar outros tempos, mas ainda não perdi a esperança porque tem outros papéis a serem vistos."

O segredo também é estendido pela Igreja a alguns objetos e obras. Objetivo: evitar a cobiça dos ladrões, que já profanaram a casa de Deus várias vezes. Com ousadia, eles já desfalcaram o acervo de 12 castiçais de prata, cada um deles com 1,5 metro de comprimento. Produzido em 1517, o conjunto em estilo barroco pertencia à antiga Catedral da Sé, construída em 1745 e de­molida em 1911 para dar lugar à nova. Como recordação ficou o lustre, do mesmo material, no corredor de acesso à capela do Santíssimo Sacramento.

Para evitar novas perdas,  esculturas,  quadros  antigos e objetos litúrgicos crucifixos, cálices, jarras e bacias de ouro. prata e bronze foram cedidos ao Museu do Liceu de Artes e Ofício e ao Museu de Arte Sacra. As demais preciosidades estão escondidas em outros locais, obviamente não divulgados por razões de segurança. Entre elas,  o  Quentino Metsys, um quadro prére-nascentista de 1466 que mostra o rosto de Cristo, e paramentos (roupas utilizadas pelos padres nas missas) bordados com fios de ouro por serviçais do papa Pio XII.

Como consolo, os olhares curiosos podem se deliciar com a cripta construída sob a capela-mor, aberta à visitação aos domingos, das 14h30 às 16h. Com 619 metros quadrados de área e 7 metros de altura, ela é unanimidade entre os visitantes. Entregue  em 1919, 35 anos antes da inauguração da igreja, a capela é ornamentada por dois monumentos: os grupos de Jó, um símbolo da fé na Ressurreição, e de São Jerônimo, ambos executados em mármore de Carrara pelo arte­são Francisco Leopoldo e Silva, irmão de dom Duarte Leopoldo e Silva, arcebispo metro­politano de 1907 a 1938.

O sacerdote é um dos 16 ilus­tres enterrados na cripta, que conta com 30 câmaras mortuárias em torno da área ocupada pelas naves. Segundo o padre Michelino, além de bispos e arcebispos de São Paulo, estão no local os restos mortais do cacique Tibiriçá e do padre Feijó. Apesar do inevitável ar macabro, a pequena igreja impressiona. Seu altar de mármore é ornamentado com bronze e guarnecido por uma coluna. O acesso é feito por uma escada dupla, com 53 degraus cada, com os corrimões e capitéis dos pila­res em granito polido. O piso é de mármore branco e negro.

Altar de Sant´Ana

Padroeira da Arquidiocese de São Paulo, Sant´Ana tem o altar ornamentado por 22 estátuas e baixos relevos que contam sua história, pouco conhecido pelos católicos. Seguindo as mesmas características do mosaico de São Paulo, a obra mostra Sant´Ana, mãe da Virgem Maria, acolhendo as súplicas dos devotos em companhia da filha

 

Igualmente majestoso é o órgão que fica atrás das colunas do altar-mor. Fabricado em Milão, na Itália, pela  Balbiani  Vegezi Bossi, tem mais de 10 mil tubos e é considerado o maior órgão da América Latina. Trata-se de uma jóia rara e valiosa, avaliada em US$ 4 milhões pelo  organeiro Ricardo Clerice, responsável pela sua restau­ração, neste ano, após um longo abandono.

Instalado   44 anos na Catedral, o instrumento tem cinco teclados,  cada um deles com 61 teclas, além de 32 pedais. Seu som impressiona pela imponência.  "A vida útil dele é indefinida", garante Clerice. Para tirar proveito de todos os recursos disponíveis, o organista dispõe de 329 comandos e três motores com potência de quatro cavalos, movimentados por ventoinhas que jogam ar nos 22 reservatórios. Um assombro, tal a perfeição e potência dos timbres. "É realmente sensacional poder tocar em um instrumento como esse", revela o maestro e organista da Catedral da Sé, Edson Leite. "Mesmo estando acostumado, sempre me emociono quando sento para tocar", completa.

O músico não é, absolutamente, o único a ser tomado pelas emoções na grande Catedral, que tem Nossa Senhora da Assunção como padroeira. O argentino Pablo Gamberra viu e se entusiasmou com o complexo eucarístico que muitos paulistanos  ainda não tiveram a curiosidade de conhecer. E, sinceramente,  vale a pena reservar algumas horas do dia para descobrir o mundo de tranquilidade e paz que domina o interior do templo, encravado no coração de São Paulo. Descobrir seus encantos e obras é travar um diálogo com a história da catequese, diante de seu plano teológico. É um passeio inesquecível!

 

 

Altar de São Paulo

O padroeiro da cidade empunha uma espada, símbolo de seu martírio, e é acompanhado por 12 santos em bronze. Os baixos-relevos da mesa de comunhão, em mármore de Garrara, narram a trajetória do soldado romano que perseguia os católicos e, depois, se tornou um deles. O mosaico seria confeccionado em chapinhas de ouro

Pia Batismal

Feita de pórfiro, tem uma coluna de mármore amarelo esculpida e é coroada por um globo de lazulita com estrelas de ouro com o monograma de Jesus. O complexo é cercado por um pequeno muro de mármore branco talhado, e o acesso é feito por quatro entradas, com dois degraus

Crucifixo do altar-mor

É uma das obras mais impressionantes da Catedral. Mostra Maria e São João observando o martírio de Cristo na cruz. O filho de Deus tem o semblante sereno, enquanto a Virgem, que não mostra o rosto, é dor. João demonstra angústia e resignação diante da cena

 

 

Órgão

A restauração do instrumento, que estava parcialmente tomado pelos cupins, foi trabalhosa. Para reconstituir uma peça por onde passa o ar, a equipe de Ricardo Clerice teve de fazer mais de 12 mil furos. Atualmente, o que mais preocupa são os ratos, que estão fazendo a festa em um dos setores do órgão. O maior de seus tubos mede 7,20 metros por 40 centímetros de diâmetro, enquanto o menor tem 1 centímetro de altura e meio centímetro de diâmetro

 

Mesa de comunhão do altar-mor

Feita em mármore de Carrara, tem 18 baixos-relevos com simbolos e Figuras proféticas que representam a Virgem Maria como Debora, Giale, Ester, Judith e Abigall

 

Campanário

A torre dos sinos é um local de difícil acesso: uma escada de 215 degraus, estreita e em formato de caracol. Mas o esforço é recompensado. Os sinos de bronze, da marca holandesa Petit & Fritsen, pesam mais de 20 toneladas, no total, e apenas os cinco maiores são acionados automaticamente da sacristia. No local, ainda existe o teclado original, de comando manual

A CRIPTA E SEUS MORADORES ILUSTRES

Seu morador mais ilustre tem um nome curioso: "príncipe da terra", em tupi. De terra, parece que entendia. Foi ele quem escolheu o terreno onde se ergueu um dos mais importantes símbolos de São Paulo, a catedral da Sé, antes mesmo da fundação da cidade. Nada mais justo que tivesse lugar cativo ali.

O cacique Tibiriçá acumulou ainda outros títulos em vida e pós-morte. Ele foi um dos primeiros índios a ser catequizado pelos jesuítas. E estreou, com seus restos mortais, a cripta subterrânea da catedral Metropolitana. Seu túmulo é o mais procurado por católicos, crentes de todas as religiões, agnósticos e ateus.
Escondida a alguns palmos abaixo, por onde passa a linha imaginária do trópico de Capricórnio, bem no coração da cidade, a cripta é uma verdadeira igreja subterrânea.

São duas entradas, à direita e à esquerda, praticamente escondidas, debaixo do altar-mor de um dos maiores templos góticos do mundo --a Sé tem capacidade para até 8.000 pessoas.

Mas apenas uma parcela pífia dos visitantes que circulam pela catedral diariamente (cerca de 5.000 fiéis e infiéis) se aventura em conhecer a cripta. Aproximadamente 70 pagantes, a expressiva maioria formada por turistas norte-americanos, asiáticos e europeus, percorrem o mausoléu diariamente, com exceção das terças, quando o local é fechado ao público.

Não importa a religião. Até mesmo os mais céticos dos visitantes acreditam que ali debaixo exista uma passagem secreta que liga a catedral a outras duas igrejas paulistanas, a de São Francisco e a de São Bento, alimentando uma das mais folclóricas lendas urbanas do centro histórico. "Tem gente que bate na parede para ter certeza de que ela não tem um fundo falso", conta a guia Vera Regina Gomes, 50.

Quando começou a monitorar as visitas, Vera vivia com as canelas roxas, de tanto tropeçar na coluna localizada à frente do painel de iluminação da cripta. "Dava até um medinho", lembra ela. O caminho continua sendo feito às escuras, mas a guia já se adaptou à vida do salão subterrâneo.

Martírio de Jó

Lá embaixo, as escadas, assim como as colunas, são de granito. O piso é de mármore de Carrara, em preto-e-branco. O teto, repleto de arcos com tijolos, segue o mesmo estilo gótico da Sé.
Bem atrás das escadas, há uma câmara funerária entre o mausoléu, em relevo de bronze, de Tibiriçá, e de Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça e regente do Império. Construída em 1700, ela foi usada na cerimônia de chegada dos restos mortais do "morador" mais novato da cripta, o padre Bartolomeu de Gusmão (1685-1724). O inventor de um tipo de balão conhecido como passarola foi transferido do Museu da Aeronáutica para lá, em 2004.

Em volta de toda a área das naves encontram-se as câmaras mortuárias de 16 sacerdotes que atuaram como bispos e arcebispos da cidade de São Paulo.

A grande maioria foi levada para lá na década de 30. Os túmulos estão dispostos de forma cronológica de falecimento. Nem todos os jazigos estão ocupados. Ainda restam 14 monumentos fúnebres vagos.

Nas duas laterais centrais da cripta, duas esculturas em mármore: Jó, o afligido do Senhor, e São Jerônimo, ambas assinadas por Francisco Leopoldo, irmão do arcebispo dom Duarte Leopoldo e Silva, responsável pelo início das obras da Sé. Dom Duarte também está enterrado no mausoléu.

A cripta quase foi destruída pela falta de conservação, umidade e infiltração, acumuladas durante anos. Até pichação tinha. Os restauradores encontraram os túmulos esverdeados, de tão sujos. As inscrições das lápides estavam ilegíveis, muitas letras foram roubadas. O salão foi recuperado durante o processo de restauração da igreja, entre 1999 e 2002.

Uma equipe formada por 12 profissionais passou dois anos cuidando do lugar. Foi naquela época que encontraram um Cristo de madeira, de 1773. Recuperada, a imagem está em frente à entrada esquerda da cripta, ao lado do altar-mor.

Muitos fiéis costumam acender velas em frente a ele, de costas para a cripta, ignorando que, a poucos passos dali, há uma outra igreja a ser descoberta.

OUTRAS IMAGENS DA CRIPTA


Créditos e Agradecimentos: Carlos Henrique Ramos, Revista Já 59 (21/12/1997), UOL/Folha de SP (ROBERTO DE OLIVEIRA em 06/08/2008)


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