As tragédias de Dona Yayá

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Dona Yayá aos 23 anos.

 

Sebastiana de Melo Freire (Mogi das Cruzes, 21 de janeiro de 1887 - São Paulo, 4 de setembro de 1961), mais conhecida como Dona Yayá, foi uma aristocrata brasileira, membro de uma das mais importantes famílias do interior paulista. Teve uma vida marcada por tragédias. Com a morte de seus pais e irmãos, herdou a fortuna da família, mas logo sucumbiu a uma doença mental que a impediu de administrar ou usufruir de seus bens, tendo sido mantida reclusa em sua residência no bairro paulistano do Bixiga, da juventude até seu falecimento aos 74 anos, quando se extingue a linhagem dos Melo Freire. Sem filhos ou parentes próximos, teve sua herança considerada vacante e todos os seus bens foram transferidos à Universidade de São Paulo.

Biografia

Filha de Josefina Augusta de Almeida Melo e Manuel de Almeida Melo Freire, empresário, fazendeiro, e político de relevo no estado de São Paulo, Yayá passa os primeiros anos de sua vida em Mogi das Cruzes. Uma série de tragédias marca desde cedo a sua vida. Uma de suas irmãs morre asfixiada aos três anos de idade. Pouco tempo depois, outra irmã falece em consequência de uma infecção por tétano, aos treze anos. Em 1899, morre sua mãe e, dois anos depois, seu pai. Órfã, passa a ser tutorada, junto com Manuel de Almeida Melo Freire Júnior, agora, seu único irmão, por Albuquerque Lins, que futuramente exerceria o cargo de presidente do estado de São Paulo.

Já na capital paulista, Yayá frequenta o Colégio Sion, enquanto seu irmão ingressa na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em 1905, nova tragédia: Manuel, desde cedo diagnosticado como portador de uma doença mental, atira-se ao mar durante uma viagem a bordo de um navio com destino a Buenos Aires. Com sua morte, Yayá torna-se a única sobrevivente dos Melo Freire e herdeira de uma vasta fortuna. Pôde por pouco tempo usufruir de seus bens. Residiu em um palacete na Rua Sete de Abril, no centro de São Paulo, onde recebia seus amigos, promovia saraus e mantinha um estúdio completo de fotografia, um de seus principais interesses. Relata-se que rejeitava todos os seus pretendentes, por considerá-los interesseiros, e que teria mantido uma afeição não correspondida pelo aviador Edu Chaves.

Já em 1918, manifestam-se os primeiros sintomas de sua doença mental, ao que se segue uma tentativa de suicídio, no ano seguinte. Yayá é internada em um sanatório, interditada. Sua residência na Sete de Abril era considerada inadequada para isolá-la. Assim, em 1925, seus curadores adquirem um vasto casarão no bairro do Bixiga, à época convenientemente afastado do centro da cidade. Paralelamente, ocorriam disputas judiciais pelo direito da curatela e pela guarda dos bens da enferma, alimentando variadas acusações, escândalos e boatos, cobertos pela imprensa da época.

Embora contando com os recursos financeiros necessários ao seu tratamento, e mesmo submetida aos cuidados de alguns dos maiores especialistas do período, como Juliano Moreira e Franco da Rocha, pioneiros da psiquiatria brasileira, a doença de Yayá progride continuamente. Trata-se da enfermidade classificada pela psiquiatria moderna como psicose esquizofrênica. Em seus acessos, "batia-se contra as paredes, feria-se com objetos e farpas, dizia impropérios, proclamava-se partidárias dos aliados na Primeira Grande Guerra, repetia continuadamente 'eu sou católica, apostólica romana', rasgava roupas, chorava, cantava, queixava-se de ser ameaçada de morte e de violações, pedia o filho que julgava ter tido, imaginava amamentá-lo e embalá-lo".

Yayá permaneceria isolada em seu casarão no Bixiga por 36 anos. O imóvel foi inteiro adaptado para o seu tratamento, da adaptação dos equipamentos dos banheiros à instalação de janelas inquebráveis, que só abriam do lado de fora. Além dela, ocupam o casarão sua amiga Eliza Grant, seu enfermeiro, uma prima e os criados. A última reforma ocorreu em 1952, quando se construiu o solário, onde a enferma ficava ao ar livre. Dona Yayá faleceu em 1961, no Hospital São Camilo.

Legado

Sem herdeiros, a fortuna de Dona Yayá foi considerada vacante, passando à propriedade da Universidade de São Paulo. O patrimônio deixado compreendia o casarão do Bixiga, hoje chamado Casa de Dona Yayá, sede do Centro de Preservação Cultural da universidade, 27 casas na rua do Hipódromo, 8 na rua Piratininga, 6 na Visconde do Parnaíba, um edifício na rua que leva o nome de sua família, Mello Alves, outro na rua Augusta, parte do edifício Veneza, uma chácara de 36 alqueires em Mogi das Cruzes, onde hoje se encontra o Centro Cívico da cidade, além de inúmeros outros imóveis, terrenos, contas bancárias, títulos e outros bens.

O patrimônio foi definitivamente incorporado à USP em 14 de janeiro de 1968. Na ocasião, o reitor da universidade, Hélio Lourenço de Oliveira, se comprometia a "prestar modesta homenagem à memória da falecida, cujo sacrifício favoreceu a mocidade estudantil desprovida de recursos que demanda os diversos cursos universitários", acrescentando que "A USP cuidará do patrimônio com a responsabilidade que lhe cabe e fará com que ele sirva aos estudantes tanto quanto não pôde servir à desditosa interdita".

Casa de Dona Yayá

Varanda da Casa de Dona Yayá -depois da restauração

Crédito: Fotos: Candida Vuolo - Acervo do Centro de Preservação Cultural da USP

Fachada da casa de Dona Yayá (foto: Vanessa Maeji)

Solário anexo à residência (foto: Vanessa Maeji)

Solarium da Casa de Dona Yayá - antes e depois da restauração

Crédito: Fotos: Candida Vuolo - Acervo do Centro de Preservação Cultural da USP

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Rua Major Diogo, nº 353. Rua Jardim Heloísa, s/n

Número de pavimentos: um mais porão

Ano de conclusão: anterior a 1881, tendo sofrido várias ampliações

Uso atual: atualmente abriga o Centro de Preservação e Cultura da USP

Proteção: Z8 200-032/ Condephaat


 

Dona Yayá, Uma vida sem vida

Dona Yayá na década de 1910. Autor desconhecido

No dia 4 de setembro de 1961 morria no Hospital São Camilo a única moradora do casarão situado à rua Major Diogo, 353. A senhora de 74 anos havia permanecido confinada em sua casa desde 1925, e dela só saíra para morrer, pois fora condenada a viver reclusa para sempre em seu cárcere particular por conta da doença mental que a acometera aos 32 anos de idade. Era uma das mulheres mais ricas de seu tempo, mas por pouco tempo pôde gozar de sua imensa fortuna. Sua riqueza, sua felicidade e sua juventude foram perdidas junto com a sua lucidez, e penou durante mais de 40 anos como uma morta-viva, cercada do maior luxo sem poder usufruí-lo. Enquanto que todos os seus entes mais queridos morreram tragicamente, ela viveu tragicamente, alheia ao mundo que a cercava e principalmente, a si mesma, e quando finalmente a morte pôs um fim a seu sofrimento, com ela se extinguiu uma antiga e poderosa linhagem paulista. Até seus parentes mais distantes foram morrendo um a um sem verem concretizadas suas esperanças de vir a herdar uma das maiores fortunas da época, pois ela viveu mais que todos eles.

Chamava-se Sebastiana de Mello Freire, e era mais conhecida como Dona Yayá.

Existem várias maneiras de ter a riqueza ao alcance das mãos e não poder desfrutá-la. Uma delas é ser abandonada pelo marido rico, ou pelo pai rico. Outra é enlouquecer, e foi esse o caminho que Dona Yayá trilhou para descer aos infernos, abandonando o mundo após ser abandonada de sua razão. Sua história superou em muito a da casa onde vivia sem viver, embora a própria casa também tenha muitas histórias para contar.

A casa

Embora se localize a apenas 1 quilômetro da Praça da Sé, a casa de d. Yayá, quando foi construída, localizava-se fora do núcleo urbano da cidade - inicialmente tinha a função de casa de campo ou chácara. A construção inicial data provavelmente do final da década de 1870, década de muitas transformações na cidade de São Paulo, advindas principalmente da chegada da ferrovia, com a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, a Sorocabana e outras.

A cidade, que durante três séculos ficou limitada ao morro onde foi fundada, desperta de sua letargia e inicia nessa época seu processo de crescimento inexorável. Com a ferrovia, a imigração toma impulso, a cidade se enriquece e começa a se espraiar pelas áreas vizinhas ao núcleo histórico, costumes e técnicas européias são introduzidas. Muita gente enriquece no período, e optam por construir residências nas imediações do núcleo urbano, não na tradicional arquitetura de taipa de pilão, característica de todas as construções no período colonial e nas primeiras décadas do século XIX, mas já em tijolos e cujos estilos imitavam os da Europa.

Sabe-se que o primeiro proprietário da casa foi José Maria Talon, que ergueu um pequeno chalé de tijolos com provavelmente apenas quatro cômodos, num terreno de mais de 30.000 metros quadrados que limitava aos fundos com o córrego do Bixiga, formador do Anhangabaú, ambos há muito subterrâneos.

Em 1888 o imóvel foi vendido a Afonso Augusto Roberto Milliet, quem provavelmente deu à residência sua configuração atual, ampliando-a consideravelmente e cercando-a de um alpendre em três de seus lados, conforme indicam recentes estudos. Paredes externas do antigo chalé passaram a ser internas, e o número de cômodos passou a uns 13. A chácara foi vendida novamente em 1902 para João Guerra, um próspero comerciante de secos e molhados. Já estava então plenamente integrada à mancha urbana, embora mantivesse a área original. O novo proprietário realizou novas ampliações, construindo alguns anexos, e por meio de reformas procurou dar à casa uma ornamentação mais sofisticada. Era uma residência da alta burguesia, mas de forma alguma da oligarquia do café ou da crescente elite industrial adventícia. Como João Guerra, havia muitos comerciantes que enriqueceram no período e procuravam emular em suas casas o modo de vida da elite político-econômica da época.

Uma das características da Casa de Dona Yayá é o significativo repertório de afrescos que cobrem as paredes de diversos aposentos do imóvel.  A pintura mural que se disseminou pela Europa no século XIX baseou-se nos afrescos então recém descobertos na cidade de Pompéia. Em São Paulo, as pinturas murais eram comuns nas residências de alto padrão do final do século XIX e primeira do século XX, e demonstravam o nível econômico de seu proprietário. Atualmente, São Paulo conta com pouquíssimos exemplares deste tipo de arte, já que a grande maioria das casas do período foi perdida, e os remanescentes continuam a ser demolidos a cada dia.

Sob seis ou sete camadas de tinta, foram encontradas duas camadas de afrescos quando da restauração recentemente efetuada no casarão. A camada mais antiga corresponde provavelmente ao período em que foi proprietário Afonso Milliet (já que o chalé construído por José Maria Talon teria sido de tijolos aparentes e portanto desprovido desse tipo de ornamentação), e caracteriza-se por motivos florais de execução mais simples, de inspiração pompeiana.

A segunda camada de afrescos é  mais requintada e complexa. A inspiração é o art nouveau, estilo surgido na Europa no final do século XIX em oposição à arte acadêmica então vigente, e que logo depois chegava ao Brasil. Suas formas sinuosas baseavam-se no mundo vegetal e em outros padrões da natureza. Além dessas pinturas art nouveau,  paisagens marinhas adornavam as paredes da sala de jantar. Essa segunda camada corresponderia ao período em que João Guerra ocupou a casa.

Externamente, a ornamentação se dá pelos frontões, pilastras embutidas, compoteiras, típicos ornatos da arquitetura neoclássica, pelas colunas de ferro fundido (fabricadas em série na Europa) que sustentavam o alpendre, alpendre aliás solução característica de todas as regiões de clima tropical. Em suma, uma casa em estilo neoclássico "tropicalizada". Um portão também de ferro com as iniciais de João Guerra guarnece a entrada.

Várias adaptações foram feitas no casarão nos anos 20 com a chegada de d. Yayá, primeiro como locatária, depois como proprietária, já que em 1925 foi efetuada a compra do imóvel por meio de seu curador. Visavam a compatibilizar o local com seu uso como sanatório particular de Yayá. O piso de madeira do salão central, transformado em seu dormitório, foi substituído por corticite. Os papéis de parede foram removidos e os afrescos foram recobertos com tinta esmaltada de cor neutra e de fácil limpeza - necessidade decorrente talvez de certa característica do comportamento da paciente. Diversos cuidados foram dispensados no sentido de evitar que a paciente se machucasse durante seus acessos de fúria: seu banheiro, por exemplo, não possuía torneiras, a água saía diretamente da parede. As janelas dos cômodos ocupados por Yayá foram especialmente projetadas pelo dr. Juliano Moreira, e além de serem inquebráveis, só se abriam do lado de fora.

A última reforma de vulto foi realizada em 1952, quando foi construído o solário, a fim de possibilitar que a paciente ficasse ao ar livre.

Na residência moravam, além de d. Yayá, numerosa criadagem, seu enfermeiro, sua amiga Eliza Grant e sua prima Eliza de Mello Freire.

O terreno do imóvel foi retalhado à medida em que a antiga propriedade rural foi sendo absorvida pela tessitura urbana, e o Bixiga passou de arrabalde a bairro central. Dos mais de 30.000 metros quadrados originais, tinha sido reduzido a 22.000 quando de sua aquisição por João Guerra. Em 1925, ao ser adquirido para d. Yayá por seu curador, encolhera para 2.500 m². Devido às obras da Radial Leste, no final dos anos 60, cerca de 300 metros quadrados do jardim da casa foram amputados.

Após a morte de Yayá em 1961, o imóvel não teve finalidade fixa, mesmo após ter passado definitivamente para a USP em 1969. Uma das iniciativas que não prosperaram, por questões burocráticas, foi a tentativa de instalar ali o Museu Memórias do Bixiga. A USP não sabia que uso dar a um lugar que teve o mais absurdo dos usos. Por longos anos esteve desocupado, um mistério para os motoristas que passavam apressados pela Radial Leste e deparavam intrigados com aquele enorme casarão rodeado de árvores frondosas, e mesmo para os moradores do Bixiga. O que haveria lá dentro? Quem seria seu dono? Seria uma casa mal-assombrada? - era o que muita gente devia se perguntar. A casa foi se tornando uma espécie de mito, mas até o mito era menor que a realidade. Quem poderia imaginar que aquele oásis de beleza e placidez em meio à cidade grande foi o cárcere de uma mulher em conflito permanente? Uma cápsula isolando hermeticamente uma louca da loucura do mundo exterior.

Hoje o mistério não existe mais, pois a casa está aberta à livre visitação e restaurada, abriga o Centro de Preservação Cultural da USP

 A moradora

Dona Yayá nasceu em 21 de janeiro de 1887, no seio de uma antiga família terratenente paulista, de grande valimento  em Mogi das Cruzes. Natural daquela cidade, era filha de Josefina Augusta de Almeida Mello e Manoel de Almeida Mello Freire, Senador estadual e Deputado constituinte, que tinha 53 anos quando nasceu Yayá. A família foi marcada por uma série de calamidades: uma das irmãs de Yayá morreu asfixiada aos 3 anos, pela ingestão um objeto em seu berço. Outra irmã morreu aos 13 anos, de tétano, ao espetar-se num simples espinho de laranjeira. Em 1899, ambos os pais de Yayá adoeceram e morreram com um intervalo de apenas 2 dias, em lugares diferentes e sem que sequer soubessem da doença um do outro. A pequena órfã e seu único irmão sobrevivente, Manuel de Almeida Mello Freire Junior, então com 17 anos, passaram a ser tutelados por Albuquerque Lins - que mais tarde viria a ser Presidente do Estado de São Paulo.

Manuel entrou na faculdade de direito, enquanto queYayá ingressou noColégio Sion, onde conheceria as amigas que a acompanharam na vida adulta e mesmo depois de louca. Mas não tardou para que nova tragédia se abatesse sobre a família, ou o que restara dela. Foi em 1905, durante uma viagem de Manuel a Buenos Aires, no paquete Orion. O médico de bordo assim narra o ocorrido:

"Declaro que, cerca de 1 hora da noite, fui chamado a prestar socorro a Nhô Manuel de Mello Freire, passageiro de 1ª classe, a bordo do "Orion", que anteriormente soffria das faculdades mentaes. Ao chegar, encontrei-o presa de um accesso furioso, tornando-se necessario para conte-lo o auxilio do comissário, machinista, chefe dos criados e pessoal de bordo. Decorridos quarenta minutos, seguiu-se sonno tranqüillo, pelo que julguei desnecessários os meus serviços, recolhendo-me porém ao camarote proximo prompto a attender a qualquer eventualidade, pois confiava o enfermo a dois criados.

Pelas tres horas fui despertar e avisado de que novo acesso o acommettia(...)Ao penetrar no camarote em que se achava, encontro-o deserto e aberta a vigia, sinal evidente de que o doente tinha se jogado ao mar".

E assim Yayá se tornou a única sobrevivente de uma família de sete pessoas. E a única herdeira de uma fortuna fabulosa. Foi levando a vida das pouquíssimas filhas da ponta da pirâmide social paulista, cercada do maior luxo que o dinheiro poderia comprar. Recebia as amigas dos tempos do Sion para saraus no seu palacete da r. Sete de Abril, passeava pela cidade em um de seus dois automóveis - numa época em que esse meio de transporte era uma raridade só disponível às pessoas extremamente ricas. Possuía em sua casa um estúdio fotográfico completo, sendo a fotografia era um de seus hobbies. Também gostava de viajar a passeio, passou seis meses na Europa em uma delas. Era muito católica, mandava rezar missas particulares em sua casa, e fazia freqüentes doações à Igreja. Da sua vida sentimental, sabe-se apenas que teve muitos pretendentes, rejeitando a todos por considerá-los interesseiros, e que teria nutrido um amor não correspondido pelo aviador Edu Chaves, outro membro da elite paulista da época.

Os primeiros sinais de desequilíbrio mental surgiram em 1918, culminando com uma tentativa de suicídio, no ano seguinte. Seguiu-se a internação em um sanatório e a interdição. Contou com a assistência dos melhores alienistas da época, como Juliano Moreira e Franco da Rocha, e naturalmente, sendo riquíssima, podia ter o luxo de ser confinada num sanatório exclusivamente destinado para ela, e não no Juqueri, destino dos doentes mentais menos abonados. Seu palacete na Sete de Abril foi considerado inadequado para a função de isolar a enferma da sociedade, e o espaçoso casarão da Major Diogo, convenientemente afastado (na época) do centro urbano, em meio a um amplo jardim, era a escolha ideal.

E para lá foi levada, alheia às disputas que então se travavam em torno de sua pessoa. Parentes e amigos cobiçavam a curatela, dando origem a pendengas judiciais, fofocas e escândalos. O caso foi acompanhado pela sociedade da época através do jornal O Parafuso, que apresentava a jovem como vítima de um complô de seus guardiões, dispostos a tudo para por as mãos em sua fortuna. Em vão foram os esforços para manter Yayá afastada dos olhares curiosos, mas com o passar do tempo, a sociedade foi se desinteressando da história. A enferma foi definhando esquecida do mundo e de si mesma, somente a morte sendo capaz de resgatá-la de sua tormentosa existência.

Quando se fala em loucura e doenças congênitas acometendo membros de antigas famílias paulistas, logo se vem à mente os casamentos consangüíneos, que buscando preservar a linhagem, acabavam por destruí-la. Talvez esse tenha sido o caso dos Mello Freire, e uma breve consulta à genealogia da família reforça esta minha suposição. A psiquiatria moderna define sua moléstia como psicose esquizofrênica, já que em seus acessos "batia-se contra as paredes, feria-se com objetos e farpas, dizia impropérios, proclamava-se partidárias dos aliados na Primeira Grande Guerra, repetia continuadamente "eu sou católica, apostólica romana", rasgava roupas, chorava, cantava, queixava-se de ser ameaçada de morte e de violações, pedia o filho que julgava ter tido, imaginava amamentá-lo e embalá-lo". Chamava os meninos que visitavam a casa pelo nome de seu irmão.

Ao morrer, e não tendo parentes próximos, sua fabulosa herança foi declarada vacante, passando assim a propriedade da Universidade de São Paulo. Além do casarão da Major Diogo, deixou nada menos que 27 casas na rua do Hipódromo, 8 na rua Piratininga, 6 na Visconde de Parnaíba, um prédio de 15 apartamentos na r. Mello Alves, 550, outro na rua Augusta, 1194, vários andares no Edifício Veneza, construído no terreno de seu antigo palacete na rua Sete de Abril, além de uma chácara de 36 alqueires em Mogi, onde se localiza atualmente o Centro Cívico da cidade, inúmeros outros terrenos, imóveis, bens, contas bancárias, títulos, etc.

Um parêntese: o livro "A Casa de Dona Yayá" faz menção a um filho natural do pai de Yayá, que certa vez teria visitado a irmã pedindo dinheiro para tratar do filho doente. Pela legislação da época, ele ou seus descendentes não teriam direito à herança. Pela lei atual, teriam.

O melhor resumo desta história está em carta datada de 14 de janeiro de 1968,  do reitor em exercício da USP, Hélio Lourenço de Oliveira, e dirigida ao juiz Odyr Porto. Buscava "prestar modesta homenagem à memória da falecida, cujo sacrifício favoreceu a mocidade estudantil desprovida de recursos que demanda os diversos cursos universitários. A USP cuidará do patrimônio com a responsabilidade que lhe cabe e fará com que ele sirva aos estudantes tanto quanto não pôde servir à desditosa interdita".

Hoje, Centro de Preservação Cultural da USP


Agradecimentos: Profa. Dra. Ana Lúcia Duarte Lanna (coordenadora da Comissão de Patrimônio Cultural da USP)

Bibliografia:

LOURENÇO, Maria Cecília França (org). A Casa de Dona Yayá. São Paulo, Edusp, 1999


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