
Pesquisadores de Limeira idendificam o médico que descobriu a Doença de Chagas, o americano Joseph Cooper Reinhardt
Um mistério da medicina mundial foi desvendado na cidade de Limeira, no Interior do Estado a pouco tempo atrás. Um grupo de pesquisadores do Pró-Memória, órgão ligado à Secretaria de Cultura daquela cidade, conseguiu identificar, depois de quase duas décadas de buscas, o homem que descobriu e fez as primeiras descrições mundiais da Doença de Chagas.
Tratava-se do médico, naturalista e aventureiro americano Joseph Cooper Reinhardt, que viveu em Limeira e Campinas, onde morreu, há mais de 120 anos.
O doutor Cooper, como era conhecido naquela região do Estado, identificou pela primeira vez os sintomas que caracterizam a doença durante suas andanças pelo Interior paulista, em 1850.
Ele a chamou de “Mal do Engasgo”, nome que se manteve nos tratados de medicina até o início do século 19, quando o cientista brasileiro Carlos Chagas descobriu o protozoário Trypanosoma cruzii, transmissor da doença, e seu vetor, o Bicho Barbeiro.
Desde o início do século, quando o “Mal do Engasgo” passou a ser chamado de Doença de Chagas, inúmeros pesquisadores buscaram em vão a identidade de Cooper.
Em 1980, graças a uma pista vaga, o professor Odilon Nogueira de Matos, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PucCamp), retomou as investigações. Ele leu referências sobre a passagem de dois pastores evangélicos pelo Brasil, entre 1836 e 1855.
Daniel Patrish Kider e James Cooley Hetcher, precursores da religião metodista no País, peregrinaram por diversas cidades do Interior paulista e, nessas andanças, teriam conhecido o tal “doutor” que diagnosticava o “Mal do Engasgo”.

Barbeiro infectado: na trilha aberta por Cooper, o brasileiro Carlos Chagas descobriu que o inseto era o transmissor do “Mal do Engasgo”
Com essa informação nas mãos, o professor Nogueira de Matos resolveu pedir auxílio ao sociólogo Wilson José Caritás, no Pró-Memória de Limeira. Caritás tem um vasto conhecimento da bibliografia histórica do Interior paulista. Não foi difícil, para ele, descobrir que os missionários Kidder e Hetcher haviam escrito livros importantes sobre o que viram e viveram no Interior do Estado.
Uma dessas obras, foi “Sketches of Residences and Traveis in Brazil”, de Kidder, foi editado apenas nos Estados Unidos, em 1845.
Duas décadas depois, em 1865, Fletcher ampliou esse material e o editou tambem no Brasil, em dois volumes, com o título “O Brasil e os Brasileiros”.
Os dois livros falavam longamente de um certo “doutor”, oriundo da Pensilvânia, nos Estados Unidos, “amante da natureza, estudioso de botânica e geologia”.
Segundo o autor, ele viera ao Brasil acompanhado de outros cientistas americanos para estudar a flora e a mineralogia destas terras ao sul do Equador.
Foi Fletcher, também, quem relatou que o tal “doutor” era o único médico conhecido em todo o País a diagnosticar “uma estranha doença aqui existente”.
Em julho de 1855, a notícia da existência do “Mal do Engasgo”, a partir de uma comunicação feita por Fletcher, era publicada no Jornal do Comércio, de Nova Iorque, Costa Leste dos Estados Unidos.
Doutor sem nome – O relato sobe a vida do ‘doutor1‘ no livro de Fletcher não era pequeno. Ocupava várias páginas, em diferentes capítulos. O missionário conta que tanto ele como seu compatriota Kidder chegaram a se hospedar, algumas vezes, na residência do “doutor” quando ele ainda vivia em Limeira.
Nas páginas 112 e 113 de “O Brasil e os Brasileiros”, Hetcher chega a invadir a vida privada do “doutor”. Conta que ele, que, quando “tinha escritório na cidade do Interior paulista” conheceu uma brasileira, viúva, por quem se apaixonou.
Era Ana Corrêa de Matos. “Por estar casado com as florestas virgens, não desejando outro casamento, fugiu para as matas. De regresso de sua viagem, ele cedeu e casou. Tiveram um filho, George Washington”, relata.
Apesar desta profusão de detalhes, o livro do missionário não revelava uma informação básica: o nome do tal “doutor”.
”Difícil saber se essa falha era intencional ou um deslize do autor”, comenta Caritás. De qualquer forma, a partir de então ele foi obrigado a tomar outro caminho. “Fiz um levantamento minucioso nos livros de nascimentos e óbitos da Cúria Diocesana de Limeira”, lembra.
O caminho mais óbvio era descobrir o registro de George Washington, o filho do casal. “Mas esse registro não existia em Limeira”, observa.
A partir dos registros dos óbitos, Caritás localizou todos os nomes de americanos que faleceram na cidade.
Procurou então seus descendentes. Novo fracasso. “Não conseguimos uma única pista concreta”, recorda ele.
No final dos anos 80 a única referência sobre um médico americano que teria vivido na cidade, no século 19, foi fornecida por um antigo morador, José Borreli.
Ele se lembrava de histórias contadas por sua avó, falecida há muito, sobre um certo doutor Harry ou Harris. Mas as investigações feitas sobre esses nomes levaram a nada.
“Imaginamos que Harry ou Harris podia ser uma adaptação, feita através dos tempos, do segundo sobrenome do doutor Cooper, Reinhardf”, afirma a socióloga Maria José Peneira de Araújo Ribeiro, diretora do Pró-Memória de Limeira e uma das principais responsáveis pelas investigações.
Pista decisiva – Depois de ter perseguido sem sucesso todas as pistas que cruzaram seu caminho, em 1989 Caritás desistiu das investigações. Mas, em 1993, uma casualidade levou o professor a retomar as buscas.
Assim que assumiu o Departamento de Memória Histórica e Arquitetônica de Cultura de Limeira ele conheceu Maria José. Ela ouvira vagas referências sobre o “doutor5“, que teria vivido alguns anos em Santa Bárbara D´Oeste, cidade próxima a Limeira.
Durante dois anos, Caritás interrogou centenas de descendentes de americanos da cidade. Chegou a procurar diversas famílias que haviam migrado para Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Novamente, tudo em vão.
A figura do “doutor”, que já se tornara quase etérea para os dois pesquisadores, adquiriu forma, abruptamente, no final de 95.
Maria José visitava o Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas e lá conheceu Maria Luiza Pinto de Moura, uma das associadas. Luiza lembrou uma história que ouvira ainda criança, em sua família.
Seus avós contavam de uma parente distante, uma viúva chamada Rita, que havia se casado, no século passado, com um médico de origem americana, em Limeira. Foi um estalo! A socióloga Maria José investiu de corpo e alma nessa nova pista
A partir de entrevistas com familiares de Luiza, foi finalmente descoberto o nome do “doutor”: Joseph Cooper Reinhardt.
Dois anos antes da passagem de Hetcher pelo Brasil este médico havia sido investigado pela Câmara de Vereadores de São Paulo, que falava da “existência aqui de um doutor, exercendo medicina sem ter apresentado seu diploma”.
Cooper foi ouvido em janeiro de 1857 pela Câmara paulistana. Mas o livro de atas desse período desapareceu e seu depoimento foi perdido para sempre.
Os familiares de Luiza diziam que Cooper, falecido em Campinas, em agosto de 1873, realmente tivera um filho chamado George Washington e um outro, batizado Lincoln. Mas, apesar de todas essas evidências, ainda não havia uma prova definitiva de que Cooper era mesmo o “doutor” que havia identificado e descrito o “Mal do Engasgo”.
“Senti que estávamos na pista certa, mas tudo ainda era baseado apenas em depoimentos e referências vagas”, conta Caritás. Aliás, como descobriria nos meses seguintes, a história de Cooper não era exatamente aquela que os livros contavam.
Vida em Campinas – Maria José e Caritás descobriram que a vida do doutor Cooper em Campinas foi muito transparente. Encontraram várias referências, em diferentes arquivos. A muIher com quem se casara não se chamava Rita. Era, na verdade, Ana Corrêa de Matos, nascida em Sorocaba
O filho chamado George Washington era uma lenda. Este era o nome da fragata em que Cooper percorrera o mundo. Seu filho chamava-se André Jackson Reinhardt e Lincoln era seu neto. O segundo filho chamava-se Benjamin. Cooper atendeu, até o fim de sua vida, em um consultório na rua 14 de Dezembro, esquina com a Doutor Quirino, em Campinas.
No começo do século transformou-se em nome de rua, na Vila Marieta. A rua Joseph Cooper Reinhardt é uma travessa da Washington Luiz, que começa na Francisco Chiaffiteli e termina na João Egídio, próxima ao Cemitério da Saudade. “Apesar de todas essas informações, ainda não podíamos garantir que Cooper era realmente o médico que descobrira o Mal do Engasgo”, lembra Cantas.
A pista conclusiva foi encontrada em 18 de julho de 1997. A partir de algumas aquarelas pintadas por Cooper, os pesquisadores descobriram que ele, exímio desenhista, assinava suas telas como H.Lewis. Abriu-se a partir daí uma infinidade de referências. O cruzamento de vários documentos permitiu concluir que Lewis e Cooper eram a mesma pessoa, ou seja, o misterioso “doutor” que havia diagnosticado o “Mal do Engasgo”.
Depois de anos de pesquisa, esses documentos foram finalmente encaminhados aos centros de História e Memória brasileiros, americanos e europeus em Julho 1997.
Caritás também se compremeteu a publicar relatórios detalhados de todas as pesquisas a respeito a partir de então
É sem dúvida um resgate da história que pareceia perdida para sempre.
Atualização e Adaptação do texto original de Paulo San Martin – Revista Já – 24/08/1997
Links relacionados:
Base de Dados – Biblioteca Virtual da Saúde
Holtzgen – informações genealógicas
Centro de Memoria da Unicamp (download pdf resenha de Nelly Bolliger Lane)