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Uma bomba sobre rodas?

A indústria automobilística chegou ao Brasil na segunda metade dos anos 50 e foi um dos principais responsáveis pelo vigoroso ciclo de crescimento econômi­co durante o governo de Juscelino Kubitschek.

No ABC paulista, onde se instalaram gi­gantes como a Volkswagen e a General Mo­tors, os fornecedores das montadoras come­çaram a acumular fortunas, enquanto os tra­balhadores comemoravam o crescimento da oferta de emprego. A euforia era uma só e foi reforçada, no início da década seguinte, com o anúncio de um projeto estrondoso: o lança­mento do primeiro automóvel genuinamente nacional. Como se veria depois, o empreen­dimento era uma verdadeira bomba.

Chevrolet Corvair Corsa foi o modelo inspirador do Democrata

A aventura teve início em 31 de outubro de 1963, quando foi fundada a Indústria Bra­sileira de Automóveis Presidente, ou simples­mente Ibap. Seu idealizador, o empresário Nel­son Fernandes, não tinha tradição na indús­tria, sendo conhecido apenas por iniciativas como o Acre Clube, um clube de campo, e o Hospital Presidente, que somava 70 mil associ­ados. Todos sabiam, entretanto, que ele era um bom vendedor — principalmente de sonhos.

Poucos meses depois, em 12 de maio de 1964, quando os militares já haviam removido João Goulart da Presidência da República, Fer­nandes mostrou seu peixe. Publicou em vári­os jornais o resultado do “Concurso Presiden­te”, que definiu as características básicas do Democrata, o trunfo da Ibap.

Democrata Presidente, Sedan de Luxo da IBAP

Com base nos desenhos do Democrata, a Ibap começou a vender as Cédulas Votantes Provisórias, cuja finalidade era captar recur­sos para a construção da fábrica. Esses títulos custavam Cr$ 33.000,00 e correspondiam à pri­meira parcela da aquisição de uma Cédula de Propriedade Votante, sendo o saldo devedor financiado em 20 prestações mensais de Cr$ 15.000,00, a partir de 30 dias da data de assi­natura da proposta de aquisição.

Os detentores desses papéis eram reconhecidos como ap­tos a receber dividendos, poderiam votar e ser votados para cargos de diretoria, transferir cé­dulas de propriedade e integrar o quadro de funcionários da empresa. No total, 87 mil títu­los foram vendidos ao público.

A esses numerosos parceiros também era oferecida a chance de comprar o Democrata em condições vantajosas. Pelo “Plano Especi­al”, qualquer sócio teria direito a receber o car­ro pagando o preço de custo acrescido de ape­nas 20%. Metade da produção da empresa se­ria destinada a essa modalidade de venda, que ainda poderia ser financiada de 15 a 30 meses

Capô fechado – A carroceria do Democra­ta, em fibra de vidro, era fabricada inicialmen­te em um pequeno armazém na avenida Tucuruvi, Zona Norte da Capital. Segundo re­gistros da época, os primeiros protótipos apresentados — sempre estacionados e com o capo fechado — tinham chassi e mecânica Corvair, o que chamou a atenção dos técni­cos automobilísticos. Logo, surgiram críticas e uma desconfiança entre os especialistas.

Fernandes, que chegou a ser comparado na época ao empresário americano Preston Thomas Tucker, contra-atacou adotan­do uma retórica nacionalista, como podia ser notado em um texto impresso na própria Cé­dula Votante Provisória: “Ao me propor a rea­lizar a Ibap, assumi com o povo um compro­misso de honra, o qual seja, de provar ao mun­do a capacidade realizadora de nossa gente.

Sa­bia que ferrenhas lutas teria de travar contra aqueles que, não acreditando neles próprios, duvidam de todos. Nada me amedronta, em­bora esteja convicto de que não terei um ins­tante de trégua, porque, para esta luta, convo­quei o povo. Os covardes ficarão em casa, os fracos me abandonarão no caminho. Porém, com os fortes, atingirei meu objetivo”.

O discurso do empresário era destemido, mas esbarrava numa estranha coincidência. Seu gru­po econômico tinha a mesmíssima razão social, N.Fernandes, do conglomerado que controlava a Vemag, fabricante no Brasil dos automóveis DKW. Como, segun­do muitos compradores das cé­dulas, os representantes da Ibap diziam tratar-se da mesma em­presa, os Fernandes, da Vemag, trataram de colocar tudo a limpo. Publicaram uma nota nos jornais, em 7 de outubro de 1964, dizen­do-se “orgulhosos de possuírem um homônimo tão brilhante”, mas es­clarecendo que nada tinham a ver com o Democrata.

A denúncia le­vou o Congresso Nacional a criar uma Comissão Par­lamentar de Inqué­rito (CPI) em junho de 1965.O resulta­do foi um laudo pessimista publi­cado em 64 pági­nas do Diário do Congresso Nacional, em 29 de junho de 1966. No mesmo exemplar do jornal, um outro laudo, assinado pelo engenheiro Luiz Gustavo de Souza Rezende, da Fábrica Naci­onal de Motores (FNM), afirma­va que seria impossível a Ibap pra­ticar o preço anunciado para o De­mocrata, Cr$ 3 milhões. “Sua ven­da dificilmente poderia ser feita por uma quantia aquém de Cr$ 9 milhões”, garantia o técnico.

O presidente da CPI, deputa­do Bias Fortes, classificou o em­preendimento como “uma aven­tura, uma audácia”. Sua definição foi ratificada por um perito do Banco do Central, o economista Niemeyer Almeida, que chamou a atenção para outro detalhe: um possível desvirtuamento dos ob­jetivos da Ibap. Segundo ele, essa empresa era uma sociedade ci­vil que captava dinheiro para a fabricação do Democrata, mas essa função ficaria a cargo da Empreendimentos N. Fernandes S.A., que não se responsabiliza­va caso a entrega do automóvel não fosse realizada.

O laudo do Banco Central motivou duas ações contra a IBAP na Justiça Federal. A denúncia acabou por provocar um novo processo-crime na Justiça Estadual, contra os diretores da IBAP, Nélson Fernandes, Paulo Walter Saldanha e Wladimir Bellagente, acusados de “coleta irregular de poupança popular sob falsa alegação de construir uma fábrica de automóveis”, em que foram condenados. Foi movida também uma ação de dissolução judicial contra a empresa na Justiça Federal.

Galpão – Apesar do escân­dalo, Fernandes foi em frente. Com a receita proveniente da venda dos títulos, pagou Cr$ 128 milhões por uma área de 42 alqueires, de propriedade de Mário de Freitas e herdeiros, no Riacho Grande, em São Bernardo do Campo, próximo à via Anchieta. Lá, começou a cons­truir a fábrica piloto, um galpão de 60 metros de frente por 40 de fundo, que, em relação à maquete, representava 2% da área total a ser edificada.

A Fábrica da IBAP em São Bernardo do Campo

Em junho de 1966, o Demo­crata foi apresentado na Feira de Rádio e TV realizada no Ibirapuera. Finalmente, seu motor deixa­va de ser um mistério: instalado na parte traseira do veículo, tra­tava-se de um moderno V-6, com 2.527 cilindradas, bloco em alu­mínio, pistões com diâmetro de 84 mm e curso de 6 mm. Tinha ainda duplo comando e válvulas de grande diâmetro, reguláveis por pastilhas, e dois carburadores Solex 40. De acordo com os folhetos de publicidade da Ibap, toda a mecânica do carro tinha sido projetada na Itália, por uma empresa chamada Proggetazione Construzione Auto Motori (Procosautom), que também foi con­tratada para os testes iniciais.

A Ibap teria adquirido e pago integralmente o projeto, de modo que era a única pro­prietária do mesmo, não tendo de pagar royalties sobre ele. Segundo especialistas, Nelson Fernandes só conseguiu fazer esse acordo com a Procosautom graças a Chico Landi, pois o piloto brasileiro conhecia, na Itália, regiões que eram verdadeiros celei­ros da engenharia mundial, com cen­tenas de projetos prontos, à espera somente de um inte­ressado em desen­volvê-los.

Detalhes da linha de montagem da IBAP

Há uma grande diferença, no entan­to, entre construir um protótipo e fa­bricar um carro em grande série. Para tanto, seriam neces­sárias encomendas gigantescas de ferramental e autopeças, que nunca foram feitas. Para com­pletar o quadro, a carroceria do modelo apresentado ao público era de fibra de vidro, material incompatível com grandes li­nhas de produção, que sempre trabalham com chapas de aço ou alumínio. A Ibap admitiu isso, mas garantiu que quando a fa­bricação do Democrata fosse ini­ciada, em 1968, as carrocerias seriam metálicas. A empresa anunciou ainda que a produção prevista era da ordem de 350 car­ros ao dia, a mesma da Volkswa­gen do Brasil na época.

Contudo denuncias ainda em meados de 1966 revelava que não teria havido qualquer contato da empresa com fabricantes de autopeças ou mesmo de maquinário. “A IBAP diz que fez o levantamento de todas as peças, até os parafusos, e os fabricantes, que são os maiores interessados, não foram consultados”, divulgava a publicação.

O empresário deu mais uma cartada audaciosa em 1968, quando anunciou a intenção de comprar a FNM, es­tatal deficitária e inchada que produzia no País o FNM 2150 sob licença da Alfa Romeo, da Itália. Seu plano previa novamente o recurso ao bolso dos seus só­cios, que subscreveriam cotas ao longo de 50 meses para reu­nir NCrS 150 milhões e entre­gá-los ao Governo. A jogada foi inútil, pois o então minis­tro da Indústria e Comércio, Edmundo de Macedo Soares, vetou a proposta. Sua justifi­cativa: “O proponente é co­nhecido e não tem capacidade financeira nem idoneidade técnica”.

O automóvel Demo­crata, que seria objeto de sua atividade no ramo, nunca foi fabricado. Não há a menor ga­rantia de que o sr. Nelson Fer­nandes tenha condições de cumprir o que prometeu, e por isso a oferta não pode ser con­siderada”. Assim, a FNM foi adquirida pela Alfa-Romeo, que teria pago US$ 36 milhões pelo controle acionário da fá­brica brasileira.

Made in Italy– Insistente, Fernandes produziu uma nova versão do Democrata, com duas portas e semelhante ao Mustang, e decidiu expô-la no Hotel Nacional de Brasília, ain­da em 1968. Como o Governo parecia cada vez mais dispos­to a interditar a “fábrica” do Riacho Grande, a solução era apelar para o nacionalismo. Assim, o esportivo exibia a marca Ibap por todos os lados, enfatizando que se tratava de um produto “Made in Brazil”.

Cartaz publicitário da IBAP

Tudo corria bem até que um enviado do presidente Costa e Silva olhou embaixo do carro e viu um “Made in Italy” estampa­do no carter. O Governo, que ain­da não autorizara o funciona­mento da Ibap e questionava se­riamente a emissão de títulos fei­ta pela empresa, voltou à carga e pediu explicações, pois o empresário havia anunciado que o mo­tor seria nacional. Ele argumen­tou que comprara tecnologia ita­liana, mas não convenceu.

A repercussão dos casos levou ao cancelamento de 37 mil dos 87 mil certificados de ações emitidos pela empresa, restando então 50 mil acionistas. Destes, 20 mil já haviam quitado suas parcelas (para pagamento em 20 meses) até meados de 1968. Nesse ano a IBAP era transformada de sociedade anônima em condomínio, a fim de aumentar os recursos para o empreendimento.

 

Medalhões dados a quem comprava os certificados de ações

Mas depois da malograda apre­sentação na Capital da Repúbli­ca, o processo de registro da em­presa foi definitivamente arqui­vado..

Fernandes viu-se obrigado a encerrar suas atividades, o que aconteceu no final de 1968. O patrimônio da empresa foi arrestado pela Justiça, tendo a fábrica de São Bernardo ficado fechada desde então. Apenas os cerca de cinco protótipos foram concluídos e nenhum sócio pôde realizar o sonho de adquirir, a preço convidativo, o primeiro carro projetado no Brasil.

Milha­res de pessoas amargassem um prejuízo enorme. Fernandes recorreu da decisão e acabou ganhando a que­da-de-braço, em 1984, 22 anos depois, no Su­premo Tribunal Federal.

Fernandes foi considerado inocente pela Justiça, mas era obviamente muito tarde e o sonho da primeira indústria de automóveis genuinamente nacional, já ti­nha ido para o túmulo.Ironia ou não, Nelson Fernandes vol­tou a ser notícia quando par­tiu para um novo e revolucio­nário negócio: um cemitério vertical em Curitiba que fun­ciona 24 horas por dia.

O que sobrou depois de anos de abandono

Há outras versões como que, o nome Presidente Democrata parece que não agradou muito aos novos comandantes militares da nação. A produção seria iniciada em março de 1967, mas antes disso o proprietário da montadora, Nelson Fernandes, começou a enfrentar processos, apreensões da Polícia Federal de peças e ferramentaria e até uma CPI, como mencionado acima.

O governo impediu parcerias e compra de fabricantes de peças. Com isso, a montadora, que contava com investidores e acionistas, perdeu fôlego e deixou de ser inaugurada.

Outra diz, que com tantas qualidades e preços acessíveis, a Ibap e o Democrata tinha “bala da agulha” para conquistar boa parte do mercado brasileiro. Este potencial despertou preocupação de que interesses seriam contrariados. O Democrata foi alvo de uma abominável campanha difamatória, atribuída às montadoras concorrentes com a conivência do Governo Militar. Durante o Salão do Automóvel de 1964, surgiram rumores fortes e discutidos pela imprensa especializada (sobretudo pela revista Quatro Rodas) de que aquele Democrata exposto no Salão nada mais era que um Corvair disfarçado, o modelo inspirador do Democrata, já que não era permitido abrir o capô do motorAanos depois, o próprio Fernandes admitiria que aquela unidade em exposição usava o chassi e o motor do Corvair.

A imprensa atacando o Democrata

Em fevereiro de 66, o Diário Oficial da publicou o relatório da CPI da IBAP, que concluía que a empresa não tinha conselho fiscal, não havia nenhum registro contábil a respeito dos recursos da empresa, bem como inexistência de Balanço Patrimonial. Isto provocou a debandada dos investidores, causando grande impacto na IBAP.

O caso FNM: Outra outra situação curiosa e inexplicada ocorreu quando o Governo resolveu colocar a FNM (Fábrica Nacional de Motores) à venda.

A Ibap mostrou grande interesse na estatal deficitária, o que lhe ajudaria na produção do Ibap popular. A própria diretoria da FNM mostrou muito interesse com a empresa ser absorvida por outra de capital nacional.

Desta maneira a Ibap convenceu seus associados, ficando acertado que cada um deles contribuiria com uma quantia extra a para a aquisiçãoda FNM, quando então foi formalizada a proposta de compra, oferecendo como garantia o terreno da fábrica da Ibap em São Bernardo do Campo.

Quando tudo indicava que a FNM seria parte ou absorvida pela Ibap, a proposta de negócio foi recusada sem maiores explicações do Ministério da Indústria e Comércio, alegando apenas que faltava à Ibap respaldo financeiro para participar. Então a FNM foi entregue a Alfa Romeo.

Enquanto corriam as negociações com a FNM, a Ibap sofreu uma invasão da Polícia Federal fazendo uma “batida” em suas dependências, apreendendo livros contábeis, extratos de contas bancárias, dos projetos e documentação da empresa. Esse evento foi uma das justificativas do Ministério da Indústria e Comércio para recusar a proposta da Ibap.

Mas nenhuma irregularidade foi comprovada no exame dos papéis.

Apesar de todas estas ocorrências e do legado de prejuízos, há que se destacar o sonho de Nelson Fernandes para criar um veículo inteiramente brasileiro que não teria que pagar royalties, e provavelmente plantar o sonho de se ter um carro genuinamente nacional,que seria conduzido depois pelo empresário João Conrado do Amaral Gurgel, que também ruiu anos mais tarde por algumas causas parecidas.

Abaixo duas boas reportagens que tentam preservar a memória desta história:

Reportagem de 25/11/2007 do programa Auto Esporte:

Reportagem no programa de carros do SBT,VRUM, em 2008:

 


 


Links relacionados:


Adaptação e atualização do texto de Rogério Ferraresi de 28/09/1997

 

Updated: 26/06/2019 — 9:28 pm