No fim do século 19, paulistanos e italianos se enfrentaram por sete dias na Capital, num episódio que por pouco não levou a Itália a declarar guerra ao Brasil
São Paulo, tem em sua história, vários conflitos, revoltas e revoluções que sangraram em suas ruas, cuja ocorrência, está na memória das pessoas e das escolas, como fatos do século 20, como a Revolução esquecida (1924), a Revolução de 1930, de 1932, Intentona Comunista em 1935, Intentona Comunista dos anos 60, já neste século, os atentados de 2006, mas a história nos revela confusões e anarquismos também no século 19.
Pouca gente sabe, mas por um triz a Itália não declarou guerra ao Brasil no final do século 19.
Um ambiente tenso existia entre os imigrantes italianos e a população paulistana, imigração esta que tem início na segunda metade do século 19, e que causava muita desconfiança da população e autoridades locais, como por exemplo, quando em abril de 1894, vários italianos foram presos por agentes de segurança, também conhecidos como “secretas”, ao saírem de uma reunião do Centro Socialista Internacional e que começaram a ser monitorados e tachados como anarquistas uns, socialistas outros, e alguns até como gatunos.
Dava-se, então, o que o chefe de polícia de São Paulo, Theodoro Dias de Carvalho Júnior, chamou de “o fato de maior importância” no que dizia respeito à segurança pública na capital, pois destas reuniões saiam inflamações de perturbação urbana, e da imprensa, cujo um dos eventos possivelmente mais conhecidos e comentados pela historiografia são os que tange a militantes e anarquistas nos anos 1890, perdendo apenas para a Colônia Cecília e talvez para a morte do anarquista Polinice Mattei durante as celebrações da Unificação Italiana em 1898 na capital paulista.
Além disto percebia-se desarmonias entre os próprios italianos, problema enraizado nas diversidades culturais existentes no território europeu. De um lado, os vindos do sul; de outro, os do nordeste da Itália, que se traduziam em comportamentos bastante distintos por aqui que contribuíam para esta desconfiança, e na monitoração de comportamentos.
Mas o ápice motivacional de uma grave crise diplomática entre os dois países foi a pancadaria entre imigrantes italianos residentes na Capital e outros moradores da cidade. O pau comeu solto entre os dias 22 e 28 de agosto de 1896, provocando algumas mortes e deixando dezenas de feridos.
Tudo em função da revolta dos paulistanos com a “Questão dos Protocolos” — um acordo negociado entre os dois países estipulando o pagamento de indenizações aos italianos
prejudicados por dois movimentos revolucionários que eclodiram no Brasil naquela época, a Revolução Federalista e a Revolta da Armada.
Como os paulistanos também haviam sofrido com os conflitos e nada receberiam, sentiram-se cidadãos de segunda classe em sua própria terra e logo trombaram com os italianos, que somavam metade da população de São Paulo na época.
Os confrontos começaram no sábado 22 de agosto, quando circularam pela Capital notícias de que os protocolos haviam sido rejeitados pelo Governo brasileiro. No largo do Rosário, hoje Praça Antônio Prado (Banespão), os italianos davam vivas ao seu país de origem e os brasileiros retrucavam com “Viva o Brasil” e “Viva a República”.
A certa altura, os italianos acusaram os “brasiliani” de terem queimado uma bandeira de seu país. A confusão começou e nem a Polícia conseguiu contê-la. O próprio cônsul italiano em São Paulo, o conde Edouard Compans Brichanteau, que apesar do nome era italiano nato, participou dos conflitos e incentivou seus conterrâneos.
As brigas se espalharam pela cidade. Por todo lado se via gente esfaqueada, baleada e ferida a pauladas. No primeiro dia, os italianos levaram nítida vantagem, já que atacaram de surpresa locais de grande concentração de público como o Teatro São José, hoje no local o Edifício Alexandre Mackenzie (Shopping Light) propriedade da Eletropaulo. A plateia foi surrada pelos estrangeiros, insuflados pelo conde, e muita gente saiu ferida.
Brichanteau foi levado pelo capitão Marcondes Brito, da Força Pública, para o Palácio do Governo, de onde saiu escoltado.
No domingo, como as arruaças continuassem, a Polícia determinou o fechamento de bares, restaurantes e demais estabelecimentos comerciais. Os conflitos entraram madrugada adentro e os 1300 policiais que foram colocados na rua não davam conta de atender a todas as ocorrências.
Só no Centro da cidade, 44 pessoas foram medicadas nas farmácias da região.
Por volta das 22 horas daquele domingo, um grupo brasileiros caminhava pelas ruas da Luz quando uma mulher, dando vivas ao Brasil, correu na direção deles. Ela abraçou José Xavier Pinheiro e este caiu logo em seguida. Só então seus amigos perceberam que se tratava de um italiano vestido de mulher. Com seu punhal, ele feriu ainda Odorico Americano Leite e João Aristides, que conseguiu revidar, dando um soco no italiano travestido.
O italiano, deixando as saias para trás, fugiu pela rua São Caetano em direção ao Brás.
Na segunda-feira, o extinto jornal Diário Popular publicou a notícia da briga na rua São Caetano e anunciou a morte de José Xavier Pinheiro.
Informava, também, a morte de José Mariano Avelos, um português de 27 anos, atingido por uma bala perdida na loja em que trabalhava, na rua Formosa, e a de um negro brasileiro que trabalhava na Olaria Maranhão, na Penha, que foi degolado por um grupo de 14 italianos. Todos acabaram presos.
No terceiro dia dos conflitos, os comícios, no largo São Francisco, se estenderam até as 19h30. Quando tudo parecia ter terminado, a Polícia foi chamada para atender uma ocorrência na rua Santa Efigênia, onde italianos entrincheirados nos cortiços nos números 35 e 37 estavam atirando nos pedestres.
Os policiais foram recebidos a bala e, ajudados por populares, invadiram as casas e prenderam seis italianos. No confronto, ficaram feridos o soldado Antônio Ferreira Silva e o italiano Vicente Grecco.
Outro tiroteio aconteceu na avenida São João, deixando ferido Clementino de Carvalho, um funcionário da Faculdade de Direito muito querido pelos estudantes e que acabou se destacando como o orador nos conflitos. Sua morte chegou a ser noticiada, mas foi desmentida.
Na rua Santa Ifigênia as brigas também recomeçaram, mas a população paulistana passou a reagir e alguns italianos entraram para as listas de mortos e feridos.
Os imigrantes preferiam atacar à noite. Na terça-feira, dia 25, por volta das 22h, a cavalaria foi recebida a balas na rua Carneiro Leão. Cercou a casa de onde partiam os tiros e prendeu 32 agressores.
Na rua do Glicério, um italiano identificado apenas como Giuseppe atirou em uma carruagem e foi detido. Os confrontos cresceram no Bom Retiro, quando quatro soldados enfrentaram dezenas de pessoas num cortiço. Um deles foi baleado e morreu no dia seguinte. Quando chegou a patrulha de cavalarianos, o quarteirão foi cercado, as portas do cortiço arrombadas e os moradores, munidos de revólveres e espingardas, capturados.
A ocorrência nem havia terminado quando os policiais foram chamados pelo coronel Xavier de Toledo para acabar com um tiroteio na Luz. Tiveram que colocar os italianos para correr.
Repercussão — No Exterior, os conflitos ocorridos em São Paulo repercutiram muito mal. Na Argentina, a imprensa mostrou os paulistas como radicais e os imigrantes como vítimas.
Na Itália, o rei Humberto I pediu informações ao seu ministro do Exterior, Rudini, enquanto os jornais inflamavam a opinião pública, defendendo até a declaração de guerra.
Os políticos italianos chegaram a pedir o envio de uma esquadra para as águas brasileiras, com o objetivo de garantir a integridades de seus patrícios.
A Marinha de Guerra adiantou-se, preparando para zarpar os encouraçados Sardenha, Rei Humberto, Lepanto, Etrúria e Colombo e mais quatro torpedeiros de alto-mar. Mas, no fim, tudo terminou em pizza.
Enquanto isso, em São Paulo, a imprensa iniciou uma campanha pela substituição do cônsul Brichanteau, considerado um arruaceiro, e pela cassação de suas credenciais diplomáticas. Logo no primeiro dia dos distúrbios, estudantes de direito já ha viam pedido ao presidente do Estado, Campos Sales, que despachasse o cônsul, um dos maiores incentivadores do conflito.
O ministro do Exterior, Carlos de Carvalho, anunciou então, no dia 24, que havia cassado as credenciais de Brichanteau, que dias depois embarcou de volta para sua terra.
Italianos pacíficos – A violência gratuita não partiu apenas dos italianos. Muitos paulistanos também atacaram sem motivo imigrantes pacíficos. Soldados embriagados bateram em imigrantes pacatos e trabalhadores na avenida Rangel Pestana, atingindo inclusive um italiano que estava com uma criança nos braços. Fato semelhante aconteceu na rua do Glícério.
Naquele tempo ainda imperava o jacobinismo, uma corrente de nacionalistas exagerados que manifestavam aversão a estrangeiros. Gente que se inflamava por pouca coisa e era capaz de cometer loucuras.
No largo São Francisco, os estudantes faziam arruaças e o delegado Fausto Ferraz pediu que acabassem com as manifestações. Como não foi atendido, a cavalaria dissolveu a baderna e um estudante saiu ferido.
No dia 27, a onda de violência acalmou e foram registradas poucas ocorrências, o mesmo acontecendo no dia seguinte.
Xavier de Toledo abriu sindicância para apurar os motivos da pancadaria e seu trabalho foi elogiado até pela diplomacia italiana, que destacou seu equilíbrio. No sábado 29 de agosto, o Diário Oficial da República, desmentiu o valor das indenizações aos italianos e garantiu que jamais reconhecera a legitimidade das reclamações.
A Justiça só mandou pagar as perdas comprovadas. Serenados os ânimos, o Legislativo aprovou os protocolos, postos em execução por decreto do presidente Prudente de Morais, em 5 de dezembro de 1896.
A “Questão dos Protocolos”, entretanto, deixou seqüelas. Por muito tempo, os italianos foram discriminados na Capital. Famílias tradicionais não aceitavam que suas filhas casassem com italianos ou seus descendentes, a quem chamavam pejorativamente de carcamanos.
Logo, começou a ser declamada na cidade uma quadra de versos preconceituosos, citada por Jânio Quadros e Afonso Arinos no livro “História do Povo Brasileiro”:
“CARCAMANO PÉ-DE-CHUMBO, CALCANHAR DE FRIGIDEIRA, QUEM TE DEU A CONFIANÇA DE CASAR COM BRASILEIRA ?”
O tempo se incumbiu de eliminar o preconceito e apagar as mágoas de parte a parte. Os imigrantes italianos e seus descendentes são louvados como personagens de destaque no processo que transformou São Paulo na potência que é, e de quebra, introduziram sua cultura, especialmente a culinária, no cotidiano da cidade. A história mostra grandes empresas e impérios montados por famílias tradicionais, como Matarazzo, Filizola, Crespi, para citas algumas.
Passados estes 117 anos, a guerra entre paulistas e italianos inspira mais risos do que o ranger de dentes, apesar das vidas que se perderam e dos prejuízos. Poderia, muito bem, servir de referência para o roteiro de um filme de comédia. O fato relevante é que não dá para imaginar São Paulo sem a presença dos italianos, apesar de todas as confusões daqueles tempos iniciais, que certamente tinham também influências do panorama de acontecimentos mundiais da época.
Estes episódios, foram tão marcantes, que fazem parte em destaque histórico da atuação da polícia paulista, junto com todas as outras conturbações, que ocorreram na cidade e no Estado. O Brasão-de-armas da Polícia Militar do Estado de São Paulo que é um Escudo Português, perfilado em ouro, tendo uma bordadura vermelha carregada de 18 (dezoito) estrelas que simbolizam conflitos que exigiram grande presença e atuação, tem em sua estrela de nº 7, representada a revolta “Questões de Protocolos” de 1896.
BIBLIOGRAFIA:
Oliveira, Flávia Arlanch Martins de – Impasses no Novo Mundo, UNESP 2008
Alves, Odair Rodrigues – JÁ Diário Popular – São Paulo 11/05/1997
Leal, Claudia Feierabend Baeta – Anarquismo e segurança pública: São Paulo, 1894, UNICAMP 2009
Acervo pessoal