Em pleno século 21, nos aflige a situação de impunidade que impera no país, tendo como compasso as benesses oriundas da constituinte de 1988 e de retoques na sequencia dos anos, formulando uma legislação onde punição ao crime não passa de uma superficialidade “jurídica”, mais saibam que há na história do país episódios de impunidade, ou de benevolência a marginais, como a caso descrito a seguir:
Extra, extra, extra!!! “Chega sexta-feira a Capital o príncipe Gustavo Dicreu Shehab, pretendente ao trono da Albânia. Extra, extra, extra!!!”
Naquele distante 26 de setembro de 1913, os paulistanos receberam uma verdadeira overdose de notícias sobre a chegada do nobre albanês. Não se falava em outra coisa, pois era uma importante visita diplomática à cidade.
Segundo os jornais, o príncipe, que já viajara por toda a Europa e América do Sul, tinha vindo ao Brasil para falar a comunidade sírio-libanesa, numerosa na Capital, sobre a situação política em que se encontrava o seu país.
Gustavo Dicreu Shehab foi tratado como um verdadeiro rei na Paulicéia. Tinha livre acesso às redações dos principais veículos de comunicação da cidade e não faltava a nenhuma das festas promovidas pela elite. Em pouco tempo, conquistou a simpatia e a confiança dos paulistanos.
“O príncipe Shehab, que fala vários idiomas, é uma pessoa de grande inteligência. Médico formado em Londres, sua alteza estuda também o desenvolvimento do Cristianismo na América do Sul, viajando incógnito sob o pseudônimo de Nagib Constantino Haddad. Do Brasil, o príncipe seguirá para a Índia, onde pretende estudar a religião mulçumana (??).
Em breve, fará uma conferência para flar dos interesses da Albânia e ainda sobre a missão sigilosa que o trouxe à América”, exaltava o artigo de um jornal paulista.
A comunidade sírio-libanesa, no entanto, não demorou a desmascarar o pretenso príncipe. Figura conhecida pelos árabes que aqui viviam, Gustavo Dicreu Shehab não passava, na verdade, de um aventureiro gozador e oportunista. Também não era a primeira vez que Nagib Constantino Haddad, este sim o verdadeiro nome do “folclórico” príncipe, passava por São Paulo.
Natural de Hammano, no Líbano, onde nasceu em 25 de março de 1887, Nagib já havia visitado a Capital em 1907. Depois seguiu para o Rio de Janeiro, então a Capital do país, onde com o título de “Príncipe da Albânia”, simulou o roubo de um valioso anel de brilhante que teria recebido de presente do príncipe de Gales, em recompensa por serviços prestados no Sudão.
Tempos depois, a Polícia local constataria que o roubo, assim como a história da campanha no Sudão, não passava de uma farsa.
Mesmo desmoralizado pela colônia sírio-libanesa, Nagib resolveu radicar-se em São Paulo a partir de 1914. Logo fundaria o jornal “A Chibata”, dirigido a comunidade árabe. Nele o “jornalista independente”, como ele próprio se auto definia, mostraria suas reais intenções. Atacava, sem dó nem piedade, as famílias mais importantes da colônia, por intermédio dos artigos do jornal, os seus desafetos.
E ai daquele que fosse contra os seus interesses e não se subordinasse a eles. Inescrupuloso, o libanês não media palavras nem esforços para tirá-lo de seu caminho.
Cadeirada: A primeira de suas “empreitadas” aconteceu em 2 de julho de 1914. Ponto de encontro da colônia árabe, o Café Brasil, situado à rua 15 de Novembro, no centro da cidade, estava lotado naquela noite.
Nagib bebia com o seu sócio Salim Labaki em uma mesa do bar quando foi interpelado pelo libanês Michel Maluf. Ao pedir explicações sobre a campanha de difamação a que vinha sendo submetida sua família no jornal “A Chibata”, sem nenhum motivo Michel recebeu uma cadeirada de Salim, seguida por dois tiros disparados por Nagib. A vítima nem sequer teve tempo de reagir.
Os freqüentadores do bar entraram em pânico. Todos começaram a brigar entre si. Com a chegada da Polícia, Michel Maluf foi removido para um hospital, enquanto Salim Labaki e Nagib Constantino Haddad eram levados à delegacia. Presos e autuados em flagrante, os dois foram liberados após o pagamento de fiança.
O susto, no entanto, não intimidou o libanês. Naquele mesmo ano, Nagib voltaria a se envolver em nova briga. Eram quase 20 horas do dia 20 de dezembro quando o jornalista Nasser Chatilla, que acabara de jantar na Pensão Syria, à rua Florêncio de Abreu, Centro da Capital, deparou com Nagib Constantino Haddad. Sem esboçar uma palavra sequer, Nagib atirou contra Nasser na altura do abdome, fugindo em seguida.
Levado às pressas para a delegacia da Polícia Central, onde recebeu os primeiros socorros, Nasser, ferido gravemente, disse que Nagib o considerava seu inimigo número um, por não concordar com a linha editorial de “A Chibata”.
Preso pelos dois atentados, o incorrigível e belicoso Nagib só recuperou a liberdade em 6 de outubro de 1916.
“O Repórter”: Em dezembro de 1917, o libanês foi novamente parar atrás das grades. Motivo, vadiagem. Para evitar um provável processo por contravenção, assim que foi solto Nagib tratou de voltar a sua antiga atividade, o jornalismo. Fundou então, o “Ar-Read” (“O Repórter”), imediatamente transformado num outro eficiente instrumento para achacar a colônia sírio-libanesa, muito mais poderoso que o anterior, diga-se de passagem.
Por ser bastante conhecido pela polícia paulistana, Nagib resolveu afastar-se da cidade e começou uma verdadeira peregrinação pelo Interior do Estado. Em viagem a Capivari, em julho de 1919, envolveu-se numa briga dentro de um estabelecimento comercial. Levado à delegacia para prestar depoimento, ficou preso por alguns dias. O fato foi noticiado pelos jornais da Capital e rapidamente chegou ao conhecimento da comunidade árabe.
Aproveitando a oportunidade, a colônia preparou um abaixo-assinado, com mais de 30 assinaturas, pedindo a expulsão do cidadão Nagib Constantino Haddad do território nacional, por prática de lenocínio.
E a política entra no meio:
A queixa foi apresentada na 2ª Delegacia Policial de São Paulo por “um grupo de sírios”, em outubro de 1919, contra o jornalista libanês Nagib Constantino Haddad. Haddad era partidário de uma Síria ocidentalizada, sob o protetorado francês, ele opunha-se frontalmente à ideia de uma grande Arábia, que englobasse todos os países árabes do Oriente Médio, sob a liderança do xeique saudita Faiçal, posição defendida por muitos imigrantes em São Paulo que viam nela a única possibilidade de união dos povos árabes.
Foram anexados ao processo 30 assinaturas de membros da colônia e cinco depoimentos de prostitutas, denunciando o acusado por exploração sexual. Recolhido à prisão, sob acusação de ser anarquista e de praticar o lenocínio, Haddad teve sua expulsão decretada em 3 de março de 1920. Contudo foi salvo por um mandado de habeas corpus, impetrado no dia seguinte por seu advogado, Avelino de Assis Andrade, junto ao Supremo Tribunal Federal. Em sua argumentação, Andrade afirmava ter sido o inquérito engendrado criminosamente pela intervenção de dos “sírios” inimigos do paciente, por questões de que a colônia síria no Brasil se achava dividida politicamente desde a conflagração do conflito europeu.
Segundo a defesa, “sendo Haddad favorável à ocidentalização das montanhas do Líbano e da Síria, despertou o ódio de um grupo de sírios, liderados por Sued e Hassib Gebara”, “partidário da independência total dos povos de origem árabe (cristãos e muçulmanos), sob o comando do rei do Hedjaz, descendente direto do profeta Maomé”. Os irmãos Gebara pediram a expulsão de Haddad, em um “rito legal falho”, pois o réu “ sequer [foi] citado, tendo seu direito de defesa cerceado pela ação criminosa da polícia de São Paulo”.
Reportando-se ao jornal, Avelino coloca mais um ingrediente no seu arrazoado, insinuando que os Gebara tentaram atrair o próprio presidente da República, Epitácio Pessoa, para sua causa. Segundo ele, os irmãos, “através de seu representante comercial em Nova York, resolveram homenagear o Presidente durante sua passagem pela cidade”, oferecendo-lhe passeios e banquetes. Seu objetivo era demonstrar “a gratidão ao país que tão bem acolheu a colônia”.
A defesa também juntou aos autos uma reportagem, traduzida para o português sob o título “Uma grande festa”, relatando que os adversários de Haddad, “todos orientados pelo dinheiro dos Gebara”, haviam festejado antecipadamente a expulsão do jornalista, “comprovando a má-fé e o dolo nos depoimentos prestados contra o paciente”. Epitácio Pessoa é alertado para o fato de seu nome estar “se prestando a coação e abuso de poder”.
Junto ao instrumento de defesa, o advogado de Haddad anexou, além de 130 assinaturas de comerciantes membros da colônia do Rio e de São Paulo em apoio ao jornalista, declaração do cônsul da França a favor do seu cliente. A decisão do Supremo Tribunal Federal foi proferida em 14 de junho de 1920, dando a Haddad a garantia de liberdade e revogando sua expulsão do Brasil.
Furioso com tudo isto, Nagib escreveu um artigo no Jornal do Comércio, em 26 de julho de 1919, repudiando a oposição da colônia e abrindo guerra contra seus adversários.
“Minha missão, como jornalista independente, é sanear a colônia sírio-libanesa, apontando à execração pública os maus elementos que a envergonham, como esses cidadãos que pediram minha expulsão do Brasil.”, ameaçou o duble de jornalista e vigarista.
Nagib cumpriu a promessa, mas se deu mal. Em 10 de março de 1920, foi condenado a quatro meses de prisão e ao pagamento de 450 mil réis de multa em um dos muitos processos movidos contra ele por injúria. Fugiu então rumo ao Uruguai, para escapar da condenação e evitar sua expulsão do Brasil. Seu advogado entrou com pedido de habeas corpus contra a medida expulsória e, a 14 de junho, o Supremo Tribunal Federal anulou a portaria do Ministério da Justiça. Nagib conseguiu também se livrar da sentença da Justiça e, após a expedição do contra-mandado de prisão, voltou a São Paulo no final de 1921.
Legítima defesa: Quando todos pensavam que tomaria jeito, o jornalista voltou a atacar a família Schuerin. Furioso com as calúnias que Nagib dirigira em seu jornal contra Alexandre Schuerin, que falecera havia poucos dias, o professor Maddid Schuerin, irmão da vítima, resolveu tirar satisfações pessoalmente com o diretor do “Ar-Read”.
Passava pouco das 9h30 do dia 5 de junho de 1922 quando Nagib desceu do bonde em frente ao Café Palácio, na rua 15 de Novembro. Maddid já estava à espera do libanês. Ao avistar o jornalista, o professor sacou o revólver. Segundo testemunhas, Nagib, sem pensar duas vezes, disparou dois tiros na cabeça de Maddid, que morreu na hora. O criminoso fugiu em direção à rua João Brícola, mas não conseguiu ir muito longe. Foi preso logo em seguida por populares em frente ao prédio do DIÁRIO POPULAR. Autuado em flagrante, alegou legítima defesa. Julgado em 8 de novembro de 1922, foi condenado a seis anos de prisão. Recorreu e, a 4 de julho do ano seguinte, foi absolvido.
Nada parecia ter limites para o libanês. Em 28 de outubro de 1929, cometeu o seu terceiro crime. Mais uma vez, pelo mesmo motivo: campanha de difamação contra uma família árabe. Inconformado com os insultos disparados por Nagib em um artigo publicado no “Ar-Read”, o comerciante Tuffy Cury, de 42 anos, resolveu procurar o jornalista para pedir explicações.
Ao entrar na redação do “Ar-Read”, Tuffy pediu a Nagib, que estava acompanhado de Stefan Galbum e Chucri Haddad, freqüentadores do clube, que fosse com ele ao corredor do prédio para conversarem. Sem lhe possibilitar qualquer gesto de defesa, Nagib disparou três tiros contra Tuffy, que morreu na hora, dentro do pequeno cômodo. Como de praxe, Nagib fugiu em seguida.
Segundo Stefan Galbum, uma das testemunhas do assassinato, Nagib premeditou o crime. De acordo com ele, logo após o telefonema de Tuffy o dono do “Ar-Read” redigiu uma carta a Calil Sattufy pedindo para que o mesmo administrasse o jornal, assim como o clube clandestino. E, de fato, a Polícia encontrou sobre uma escrivaninha do escritório a seguinte carta:
“Ao sr. Calil Sattufy — Saudações — Confio ao amigo, desta data em diante, a guarda e a administração do escritório e dos negócios do “Ar-Read”, bem como a direção do Centro Literário Sírio-Libanês, até nova comunicação….”.
Perdão do Presidente – Após assassinar Tuffy Cury, Nagib Constantino Haddad simplesmente desapareceu do mapa. Só em 1° de abril de 1930, quando foi pronunciado pelo juiz da 4a Vara Criminal, a Polícia obteve informações seguras de que o criminoso estava refugiado na Colômbia.
As autoridades policiais entraram, então, em contato com o governo da Colômbia, pedindo a extradição do libanês. Recapturado, a polícia colombiana estabeleceu o prazo de 90 dias para que Nagib fosse retirado do país por agentes brasileiros. Em 20 de outubro, retornaram a São Paulo trazendo o fugitivo.
Nagíb Constantino Haddad foi julgado em 26 de abril de 1933 e condenando a 30 anos de prisão. Além dos crimes cometidos no Brasil, o libanês também era acusado de ter assassinado sua mulher em Nova Iorque, na Costa Leste dos Estados Unidos, onde vivera anos antes de iniciar a peregrinação pelo globo com o título de “Príncipe da Albânia”.
Nagib apelou da sentença e no segundo julgamento, realizado em 6 de agosto de 1934, sua pena foi reduzida para seis anos. No entanto, o Ministério Público entrou com recurso e, em 14 de setembro de 1936, ele foi condenado novamente a 30 anos de prisão. Nagib entrou com novo recurso, conseguindo anular o julgamento anterior em 27 de maio do ano seguinte. Pela quarta vez foi levado ao júri, sendo condenado a 10 anos e seis meses de prisão.
Regeneração? – Em 17 de julho de 1937, Nagib deu entrada na Penitenciária do Estado, onde ficou até 28 de julho de 1938, quando obteve a liberdade através do indulto concedido por Getúlio Vargas, então Presidente da República. Livre, o jornalista voltou a dirigir o “Ar-Read” com muitos elogios ao Presidente Getúlio Vargas, de quem recebera o perdão, e adotando uma linguagem mais cuidadosa. Mas não houve tempo suficiente para constatar se o incorrigível libanês tinha realmente se regenerado.
Depois de sair da prisão, Nagib confidenciou a alguns amigos que passara a notar que, com freqüência, vinha sendo observado por alguém conhecido. Não conseguira, entretanto, identificar o tal homem.
No dia 14 de abril de 1941, por volta das 13h, o jornalista percebeu que estava sendo seguido, mais uma vez, pela rua 25 de Março. Assustado, Nagib, na época com 54 anos, entrou num estabelecimento comercial.
Segundo testemunhas, um homem entrou em seguida e atirou duas vezes contra Nagib. Atingido no peito e no abdome, o diretor do “Ar-Read” morreu no local, em conseqüência de hemorragia interna traumática. Ironia do destino, o agressor usara a mesma tática do jornalista: sem esboçar nenhuma palavra, atirou contra o adversário, fugindo em seguida.
No dia seguinte ao crime, Salim Nicolau Cury, irmão de Tuffy Cury, morto pelo libanês em 1929, apresentou-se à Polícia como o assassino do “Príncipe da Albânia”. Em seu depoimento, Salim afirmou que não tinha a intenção de matar Nagib. “O assassinato do meu irmão Tuffy encheu meu coração e o da minha família de mágoa. Mas, mesmo assim, em nenhum momento pensei em vingar-me de Nagib Constantino Haddad”, teria dito ele aos policiais. E completou: “Só matei Nagib por ter sido insultado e para não ser morto por ele, como meu irmão”.
E assim se encerra a vida do príncipe de araque, deixando um legado de 6 prisões, várias fugas para outros países, 2 tentativas e 3 homicídios e com esta vasta carreira ficou preso apenas 8 anos e 2 meses! Semelhança com os tempos atuais ????
Bibliografia/Fontes:
- Biblioteca Nacional Digital Brasil *Nagib Constantino Haddad*
- Wiki *Nagib Constantino Haddad*
- Cristina, Kelly – Um príncipe de araque, JÁ-Diário Popular – #39 de 03/08/1997, São Paulo
- Francisco, Julio Bittencourt e Lamarão, Sérgio – Política imigratória e expulsão de estrangeiros: sírios e libaneses no Brasil no início do século XX, Revista História 2.0 – #6 de Dezembro 2013, Bucaramanga – Colombia