Quem vê o célebre quadro de Pedro Américo sobre a Independência do Brasil imagina que D. Pedro convocou uma grande manifestação para marcar o rompimento com Portugal. Testemunhas oculares, contudo, afirmaram que o Grito do Ipiranga nada teve de retumbante, conforme relata o padre Belchior Pinheiro, que integrava a comitiva do príncipe regente naquela viagem. Segundo ele, o fundador do Império do Brasil cavalgava, na verdade, uma besta, e não o cavalo baio pintado por Américo (veja o relato abaixo (**).
Em 7 de setembro de 1822, o príncipe regente D. Pedro vinha de Santos quando, já próximo de seu destino, foi alcançado por dois mensageiros que lhe entregaram diversas cartas. Uma delas, de autoria de sua mulher, a princesa Leopoldina, o aconselhava a proclamar a independência, pois a corte portuguesa queria retomar o processo de colonização do Brasil.
Indignado, D. Pedro bradou então o célebre “Independência ou Morte!”
É assim que se tem ensinado às crianças o famoso episódio ocorrido na colina do Ipiranga há 190 anos. O que não se explica nos bancos escolares é por que ele vinha de Santos, já que morava no Rio de Janeiro, então capital do Vice-Reino.
Teria vindo de navio até aquele porto e depois subido de cavalo rumo ao planalto? E que motivo o trouxera ao território paulista? Encontrar-se com Domitila de Castro, depois conhecida como Marquesa de Santos? Não, até porque ele nem a conhecia ainda.
D. Pedro veio à província de São Paulo por causa de uma quartelada, uma rebelião patrocinada por forças simpáticas a Portugal.
Na verdade, não desembarcou em Santos. Viajou a cavalo, pelo Vale do Paraíba, para colocar ordem na bagunça que reinava na cidade de São Paulo. Depois, foi até o Litoral para apaziguar os ânimos da tropa revoltada contra a “bernarda”, como eram chamadas na época as rebeliões contra as instituições estabelecidas.
O golpe fora desfechado em 23 de maio de 1822 pelo Partido Português, depois de perceber que a conspiração pela independência do Brasil, costurada pelos maçons e liderada pelos irmãos Andrada, ganhava vulto. Esse processo havia vinha rolando há tempos e teve um de seus grandes momentos em 9 de janeiro de 1822.
Naquele dia, o príncipe regente que fora intimado pela corte portuguesa a regressar a Portugal para que o Brasil fosse recolonizado, anunciou sua célebre resposta ao presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, José Clemente Pereira:
“Como é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto: diga ao povo que fico”. O episódio, que contou com a participação da Maçonaria, ficou conhecido como Fico.
Muitos portugueses, inclusive militares, viriam a apoiar a independência. Até a pegariam em armas para defender a jovem nação em várias oportunidades, a partir da Campanha da Cisplatina. Outros se opuam, como era o caso do grupo de São Paulo que, desde o episódio do Fico, passou a tramar um golpe destinado a depor a junta provisória nomeada pelo príncipe régente. Antes chefiada por João Carlos Oeynhausen, simpático a Portugal, a junta passou a ser encabeçada por Martim Francisco, irmão mais velho de José Bonifácio, que conspirava pela causa da Independência.
Golpe – A decisão do príncipe regente irritou dois dos maiores líderes da causa portuguesa em solo brasileiro, o juiz de fora José da Costa Carvalho e o brigadeiro Francisco Inácio de Sousa Queirós, que moravam no Rio. Em 23 de maio, os partidários de Francisco Inácio na Capital paulista puseram as tropas na rua, formando no largo de São Gonçalo, hoje largo da Liberdade.
Em seguida, convocaram a Câmara e depuseram Martim Francisco e outro membro da junta, o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão.
O Comandante militar de Santos, Xavier de Almeida começou a subir a serra do Mar com suas tropas para enquadrar os golpistas. Recebeu apoio da Câmara de Itu, que também tomou posição contrária aos inimigos da independência do Brasil. Muito ousados, estes não avaliaram bem a gravidade do ato que haviam cometido em São Paulo. Resolveram, então, recuar, pedindo a D. Pedro que viesse a São Paulo resolver a questão. O convite foi aceito.
O príncipe regente deixou o Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822. Seu primeiro pouso foi em Venda Grande, onde o padre Belchior Pinheiro, tio de José Bonifácio, juntou-se à comitiva. Dali em diante foram festas, banquetes e missas em cada vila pela qual ele e seus homens passavam. O fundador do Império brasileiro teve seu nome até ligado à culinária, pois lhe serviram pratos regionais que nunca tinha provado. Elogiou as iguarias, muitas das quais passaram a ser servidas à moda D. Pedro I.
Em 24 de agosto, D. Pedro chegou à Penha, na Zona Leste da Capital, à tarde. Lá, foi seu derradeiro pouso. No dia seguinte, ele era recebido com festa na Capital paulista. Depôs a junta que se instalara no poder e passou o bastão para Xavier de Almeida, como já havia determinado. Em seguida, rumou para Santos, com o objetivo de acalmar as tropas e anunciar-lhes que os “bernardistas” já estavam fora do poder. Feito isso, subiu a serra do Mar.
Quando já se encontrava no sítio do Piranga, como era chamada aquela região da cidade, vieram ao seu encontro os mensageiros Paulo Bregaro e Antônio Cordeiro, de quem recebeu documentos das cortes portuguesas que o intimavam a retornar à Europa e deixavam claro o propósito lusitano de rebaixar o Brasil de Vice-Reinado para colônia.
A remessa incluía ainda cartas de sua mulher e de José Bonifácio aconselhando-o a reagir à intimação lusitana declarando a independência do Brasil. E foi o que ele fez. Eram quatro horas da tarde daquele 7 de setembro de 1822.
(**) A carta do Padre Belchior
Em carta escrita em 1826 a Manoel Joaquim da Rocha, o religioso conta detalhadamente os fatos ocorridos naquela tarde de setembro de 1822.
Segundo o padre, D. Pedro mandou que ele lesse em voz alta os documentos que lhe foram entregues por Paulo Bregaro e Antônio Cordeiro: uma instrução das Cortes tratando-o como rebelde e intimando-o a voltar para Portugal, uma de D. João VI, outra da sua mulher, Leopoldina, outra de José Bonifácio.
“D. Pedro, tremendo de raiva, arrancou das minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os, deixou-os na relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, abotoando-se e compondo-se a fardeta (pois vinha de quebrar o corpo à margem do riacho do Ipiranga, agoniado por uma disenteria), virou-se para mim e disse:
—E agora, padre Belchior?
E eu respondi prontamente:
—Se Vossa Alteza não se faz rei do Brasil será prisioneiro das cortes e será, talvez, deserdado por elas. Não há outro caminho senão a independência e a separação.
D. Pedro caminhou alguns passos, silenciosamente, acompanhado por mim, em direção aos nossos animais que se achavam à beira da estrada. De repente, estancou já no meio da estrada, dizendo:
—Padre Belchior, eles o querem, eles terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de “rapazinho” e de “brasileiro “. Pois verão agora o quanto vale o rapazinho. De hoje em diante, estão quebradas as nossas relações; nada mais quero do Governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal.
Respondemos imediatamente, com entusiasmo:
– Viva a Liberdade! Viva o Brasil separado! Viva D. Pedro!
O príncipe virou-se para seu ajudante de ordens e disse:
Dize a minha guarda, que eu acabo de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal.”
O barão de Pindamonhangaba foi outra testemunha ilustre do Grito do Ipiranga, pois naquele dia ele comandava a linha de frente da comitiva de D. Pedro. Em relato feito a João Romeiro, narra assim o episódio:
“Chegando ao Ipiranga, sem que ninguém aparecesse, fiz parar a guarda junto a uma casinhola que ficava à beira da estrada, à margem daquele riacho.
Para prevenir qualquer surpresa, mandei o guarda Miguel de Godói, que era dos mais moços, colocar-se de atalaia em um lugar de onde pudesse descobrir a aproximação do príncipe.
Tomando esta providência, apeamos e nos pusemos a descansar, conforme era natural.
Poucos minutos poderiam ter se passado depois da retirada dos viajantes (Bregaro e Cordeiro), eis que percebemos que a guarda, que estava de vigia, vinha apressadamente em direção ao ponto em que nos achávamos. Compreendi o que aquilo queria dizer e, imediatamente, mandei formar a guarda para receber D. Pedro, que devia entrar na cidade em duas alas. Mas tão apressado vinha o príncipe, que chegou antes que alguns soldados tivessem tempo de alcançar as selas.
Havia de ser quatro horas da tarde, mais ou menos.
Vinha o príncipe, na frente. Vendo-o voltar-se para o nosso lado, saímos ao seu encontro. Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, estacou o seu animal e de espada desembainhada, bradou:
—Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligaram ao Governo português! E nos topes (emblemas lusitanos no alto dos chapéus) que nos indicam como súditos daquela nação, convido-vos afazerdes assim.
E, arrancando do chapéu que ali trazia, a fita azul e branca, a arrojou ao chão, sendo nisto acompanhado por toda a guarda, que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino.
Depois de vivas ao Brasil independente, a D. Pedro, seu defensor perpétuo, o príncipe ainda bradou: “Será nossa divisa de ora em diante — ‘Independência ou Morte’— a que fizeram coro todos os componentes da comitiva.”
Adaptação e atualização do texto original de Odair Rodrigues Alves – Revista Já 07/09/1997
Belo relato Amaral! As escolas são sempre regidas por interesses políticos e nem sempre nos mostram a historia real, mas de uma forma ou de outra e buscando as diversas literaturas existentes, acabamos por entender melhor episódios marcantes de nossa historia. Valeu!!!
Quem foi o &#* que inventou a estória que aprendemos na escola? Valeu Amaral por alguns detalhes que desconhecia.