As recentes manifestações deste mês de Junho de 2013, tendo como motivação inicial a questão de tarifas de transporte público, tem precedentes muito parecidos com o quebra-quebra de 1947, onde a motivação principal cede espaço para anarquias urbanas e infiltrações políticas com objetivos muito similares !
“Revoltada com o aumento das tarifas de transporte público, a população da Capital destruiu centenas de bondes e ônibus, há 66 anos”
Foi uma pancadaria como poucas vezes se viu na Capital. Há quase 66 anos, no início de agosto de 1947, a população de São Paulo incendiou 16 ônibus, cinco bondes, dois carros da Prefeitura e ainda depredou outros 347 veículos da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) em represália ao aumento generalizado das tarifas de transporte público. A confusão foi de tal ordem que provocou a queda do então prefeito da Capital, Cristiano Stockler das Neves, responsável pela impopular medida.
A decisão começou a ser planejada tão logo a CMTC foi criada, em março daquele ano, para suceder a Light na prestação de serviços de transporte público na Capital. Como a tarifa dos bondes estava congelada desde o início da operação, o negócio não era dos mais rentáveis, o que dificultava a manutenção das linhas e a sua expansão. As autoridades do município tentaram defender esse argumento inúmeras vezes em entrevistas e pronunciamentos, mas foi inútil, pois o povo não considerou a decisão justa.
O quebra-quebra teve início em 1º° de agosto, quando a passagem dos bondes, que custava Cr$ 0,20 desde 1901, foi reajustada para Cr$ 0,50 e as dos ônibus, que eram divididas em três categorias, foram unificadas em Cr$ 1. O primeiro incidente foi registrado às 11 horas daquela sexta-feira chuvosa. Aos gritos, um grupo de populares investiu contra um bonde no largo São Francisco no momento em que o veículo recebia passageiros. Em poucos minutos, os manifestantes depredaram dois bondes e ainda assaltaram um ônibus da linha Jardim Paulista. Em seguida, o grupo subiu a avenida Brigadeiro Luís Antônio, atacando todos os coletivos que cruzavam seu caminho.
Simultaneamente, a revolta explodia no largo da Pólvora e ganhava a rua da Liberdade. Armados com pedaços de paus e com as próprias alavancas dos bondes, os populares investiam contra os veículos, quebrando balaustres, vidros, bancos e rasgando cortinas. Os ônibus também não escaparam à fúria popular e, em pouco tempo, mais de dez estavam depredados.
Descendo pela Liberdade, a massa, ao atravessar a praça João Mendes, quebrou todos os veículos da CMTC que ali se encontravam, tendo chegado a atear fogo em vários ônibus. Dirigiram-se em seguida à praça da Sé, onde continuaram a tarefa de depredação e apedrejamento dos veículos da CMTC que por ali transitavam.
As depredações mais contundentes ocorreram nas imediações da praça do Patriarca e do vale do Anhangabaú, onde se concentravam os pontos iniciais de diversas linhas. Na esquina do viaduto do Chá com Patriarca, dois ônibus novos da linha Perdizes foram assaltados, quebrados e finalmente, incendiados. No Anhangabaú e na praça Ramos de Azevedo, o quadro era o mesmo. O Centro da Capital estava pegando fogo, literalmente.
A revolta se espalhou rapidamente pela cidade. Na Avenida Paulista, no cruzamento com a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, a multidão atacou dois bondes fechados, os famosos “camarões”, assim chamados por causa da sua cor, de um laranja berrante. Em frente à Prefeitura, instalada em um edifício na rua Libero Badaró que dava fundos para o vale do Anhangabaú (Palacete Prates), a multidão atacou dois carros oficiais que estavam estacionados, ateando-lhes fogo. Rapidamente, os dois automóveis ardiam e ficavam totalmente destruídos.
Enfurecida, a massa se concentrou em frente à sede da Prefeitura, e só não a invadiu porque soldados da Cavalaria entraram em ação, dispersando a multidão. Esta, então, se dirigiu para o Anhangabaú, onde assaltou os porões da Prefeitura, retirando, do Arquivo Municipal, ali instalado, pacotes de documentos que imediatamente eram abertos e espalhados pelo gramado do vale. Uma nova carga dos policiais, contudo, dispersou a turma.
Também o prédio da Light (uma das acionistas da CMTC) foi atingido por pedras e paus. Todas as vidraças da sua parte frontal foram estilhaçadas. Na esquina da rua da Figueira com avenida Rangel Pestana, a multidão invadiu um posto de gasolina e saqueou o suficiente para atear fogo aos ônibus e bondes. Mas o posto não foi depredado, nem tampouco roubado. Na rua da Consolação, na esquina com alameda Santos, um ônibus foi parado pela multidão e o motorista, assustado, disparou um tiro de revólver que atingiu um menor de idade. Se não fosse a rápida atuação da força pública ele teria sido linchado. Mas nenhum outro motorista ou motorneiro foi molestado. A conduta da multidão em geral se repetia: os populares cercavam os ônibus e bondes e exigiam que os condutores abandonassem seus postos e que todos os passageiros descessem, em seguida o incendiavam, sem ferir qualquer pessoa. As depredações e os ataques da população se espalharam por outros bairros da cidade, mencionam-se ocorrências de ataques sistemáticos no terminal de bondes de Vila Mariana, Penha, Brás e Santo Amaro. Preocupadas, as guarnições da 2ª região militar entraram imediatamente em prontidão. O governador Adhemar de Barros alarmado com as dimensões da revolta popular teria telefonado ao presidente Dutra, no palácio do Catete, afirmando que somente o exército seria capaz de conter a rebelião popular e restabelecer a ordem. O presidente Dutra teria negado a intervenção do exército, alegando que o assunto era de exclusiva competência do governo do Estado.
Comunistas
Logo após ser informada da revolta popular, a direção da CMTC determinou que todos os ônibus e bondes fossem recolhidos às garagens e estações. A ordem foi cumprida penosamente em meio à grande confusão reinante e, por volta das 16 horas, todos os veículos de transporte coletivo estavam fora das ruas, com exceção dos que foram destruídos.
Enquanto isso, a Polícia se mostrava incapaz de conter os manifestantes, movimentando-se desordenadamente e com dispersão de esforços, embora os focos de violência já estivessem claramente identificados. Por conta disso, o comércio resolveu baixar suas portas muito mais cedo. O faturamento naquele dia só foi bom para os taxistas, que, com o colapso do sistema público de transporte, passaram a fazer lotações rumo a todos os cantos da cidade.
No dia seguinte, alguns ônibus e bondes voltaram a circular, mas não refrescaram a vida de uma boa parte da população que, naquela época, trabalhava pelo menos em regime de meio expediente aos sábados. Com isso, os taxistas continuaram a trabalhar dobrado, embora sofrendo a concorrência de quem não era ramo. Motoristas de automóveis particulares e até mesmo de caminhões lançaram-se às ruas para reforçar o orçamento doméstico.
O trabalho também era intenso nas oficinas da CMTC, onde os mecânicos da empresa reparavam os veículos danificados na véspera para colocá-los o quanto antes de volta em circulação. Mas as dificuldades não eram poucas, já que os veículos e até mesmo a maioria de seus componentes eram importados. Ou seja, por causa de uma ou outra peça em falta no estoque, bondes e ônibus tinham de ficar encostados nas garagens.
Pelas ruas, a temperatura já havia descido, mas ainda foram registrados alguns acidentes. No sábado, dois irmãos se postaram na entrada da galeria Prestes Maia, no vale do Anhangabaú, onde havia vários pontos de ônibus, e começaram a incitar o povo a novas depredações. Foram presos.
No sábado, houve algumas manifestações na praça do Patriarca, dissolvidas pela Cavalaria, que levou diversos manifestantes para o temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Também no domingo, às 19h30, um “camarão” por pouco não foi depredado na rua Vergueiro. E até em São Bernardo do Campo foram registrados incidentes: uma perua equipada com alto-falante circulou pela cidade da região do ABC incitando o povo a partir para novas depredações. Os autores da proposta foram detidos.
Houve gente que partiu para atos irresponsáveis, como Astor de Oliveira Guimarães Dias, de 23 anos. No domingo, ele jogou um caibro sobre os trilhos quando um bonde lotado, proveniente de Santo Amaro, se aproximava em grande velocidade do largo da Pólvora. Por sorte, o motorneiro conseguiu frear a tempo, evitando assim que o carro saltasse dos trilhos. O rapaz foi preso.
Nenhuma morte foi registrada nos incidentes, mas muitos manifestantes ficaram feridos, alguns a tiros de fuzil, como o operário Alexandre de Jesus, de 19 anos, alvejado na praça do Correio, e José Antônio Isidoro, de 23. que foi atingido por um disparo na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Também foram feridos soldados da Força Pública, motorneiros e condutores. Alguns ficaram internados em estado grave no Hospital das Clínicas e na Santa Casa.
O governador do Estado, Adhemar de Barros, utilizou essas vítimas para atacar seus adversários políticos. Foi sobre os ombros deles que Adhemar jogou a responsabilidade pelos feridos e prejuízos causados à cidade, o que lhe permitiu dar início a uma intensa perseguição aos militantes de esquerda, especialmente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujo registro fora cassado em maio.
O governador, entretanto, sabia muito bem o que poderia acontecer na cidade em função do aumento das passagens. Tanto é que ele não pensou duas vezes antes de atender o convite para participar das comemorações do 50° aniversário de Bauru, comemorado naquele mesmo 1° de agosto. Adhemar só voltou ao Palácio dos Campos Elíseos, então sede do Executivo paulista, na manhã do sábado, quando a confusão já era menor.
Além dos comunistas, quem pagou o pato foi o prefeito Cristiano Stockler das Neves. Ele procurou justificar de todas as formas a exagerada majoração das passagens, mas o quebra-quebra o desgastou muito junto à população e aos seus pares no poder, a ponto de a CMTC passar a ser chamada jocosamente de “Cobre Mais Trinta Centavos”. No dia 28 de agosto ele foi substituído pelo jurista Paulo Lauro, primeiro negro a exercer o cargo de prefeito de São Paulo.
Ferro-velho
A ideia de se criar uma estatal para cuidar do transporte coletivo na Capital paulista surgiu no final dos anos 30, na interventoria de Adhemar de Barros, quando Prestes Maia era prefeito da capital. A empresa, imaginavam os dois governantes, deveria iniciar suas atividades em 1941, quando venceria o prazo de 40 anos concedido à Light para explorar o serviço de bondes elétricos na Capital. O presidente Getúlio Vargas, entretanto, não aprovou o plano e baixou decreto prorrogando o contrato com a Light. Com a queda de Getúlio, em 45, o presidente José Linhares revogou tal decreto.
Em 9 de março de 1947, cinco dias antes da posse de Adhemar no governo paulista, a CMTC finalmente saiu do papel. A empresa surgiu com um capital de Cr$ 250 milhões injetado pela Prefeitura (Cr$ 80 milhões), governo do Estado (Cr$ 70 milhões), Light (Cr$ 60 milhões) e outras empresas de ônibus (Cr$ 40 milhões). A Light ficava como acionista porque cabia a ela fornecer a energia para mover os bondes e também os ônibus elétricos, os chamados trólebus, que passaram a operar em 1948.
Menos de cinco meses depois, a CMTC estava tecnicamente quebrada. Após fazer um balanço dos prejuízos causados pelo quebra-quebra e dos recursos necessários para reaparelhar o sistema de transporte coletivo da cidade, a Prefeitura concluía que seriam necessários 300 milhões de cruzeiros. Descapitalizada, a empresa, que não possuía mais do que 1.100 veículos, sendo 500 bondes e 600 ônibus, foi capengando anos a fio, de crise em crise, limitando-se a adquirir verdadeira sucata, isto é, ônibus e bondes usados retirados de circulação no Exterior e empurrados para a Prefeitura paulistana.
Ainda em 1947, por exemplo, a CMTC anunciou com estardalhaço a compra em Nova Iorque, nos Estados Unidos, de 75 bondes fechados. Os veículos em questão foram substituídos nas ruas da cidade americana pelos PCC, o bonde mais moderno e confortável do mundo na época.
Era de se esperar que os americanos torrassem o material velho por qualquer preço, mas isso não aconteceu. Ao contrário. Um PCC custava nos Estados Unidos o correspondente a Cr$ 600 mil, mas eles venderam a São Paulo os bondes velhos, sucateados, por absurdos Cr$ 200 mil cada. Nada como um bom negócio com os brasileiros para se livrar lucrativamente do ferro-velho, raciocinou acertadamente a prefeitura de Nova Iorque.
Episódios como este foram uma constante na trajetória da CMTC. Para piorar, a empresa, como é comum entre as estatais, tornou-se um cabide de empregos e um paraíso para funcionários fantasmas. Foi liquidada, na segunda administração de Paulo Maluf, que sucedera Luiz Erundina que a inchou absurdamente, e ela foi substituída pela São Paulo Transportes — SPTrans com a função específica de apenas monitorar, regular, e fiscalizar as empresas concessionárias. Depois de provocar uma sangria desatada nas economias do município, a CMTC chegou ao fim sem conseguir criar um sistema de transporte pelo menos razoável para o paulistano.
Por problemas semelhantes diversos motins e revoltas urbanas se espalharam pelo Brasil. Depois de São Paulo, vieram Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Natal, Uberlândia e muitas outras cidades.
O que mais impressiona segundo os relatos da grande imprensa da época, é que este quebra quebra de ônibus e bondes em 01 de Agosto de 1947, é o ímpeto com que os vários setores da cidade aderem espontâneamente, às arruaças, anarquias e a violência e ao mesmo tempo a simultaneamente com que explodem em diferentes pontos da cidade, num processo que se inicia com ataques a unidades de transportes coletivos, passando por outros atos contra tudo que está no caminho, e atinge seu clímax no enfrentamento com as forças policiais, destinadas a manter e a restabelecer a ordem pública. Tal como naqueles tempos, o que vimos hoje ocorrendo nas primeiras manifestações deste junho de 2013, tem muita semelhança.
LINKS RELACIONADOS:
Revista Esquinas – nº 41 – Faculdade Cásper Líbero
BIBLIOGRAFIA:
Duarte, Adriano – o motim contra os ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947
Duarte, Adriano Luiz – O “dia de São Bartolomeu” e o “carnaval sem fim”: o quebra-quebra de ônibus e bondes na cidade de São Paulo em agosto de 1947 – Revista Brasileira de História 2005
Alves, Odair Rodrigues – Quebra-Quebra, JÁ Diário Popular São Paulo 03/08/1997
Silva, Carlos Benedito Rodrigues da/Fry, Peter/Vogt, Carlos/Gnerre, Maurizio/Sorj, Bernardo/Seeger, Anthony – Movimentos Sociais Urbanos, Minorias étnicas e outros estudos – Brasília 1983
Amaral, É sempre assim, eles adoram tumultuar. Paz, Pimenta
É um paradoxo estes ataques de fúria, com danos graves aos veículos. Muitos terão que esperar a recuperação ou a reposição dos mesmos, e portanto a qualidade do transporte piora, até que tudo volte como era antes. Vai entender a mente de uma população em fúria. Luiz Alnat