A ilha Anchieta, hoje considerada um dos paraísos do Atlântico no Estado de São Paulo, convertida em um Parque Estadual, tem em sua história derramamentos de sangue por motivos variados. A história da Ilha já foi relatada em vários documentários e tem resumidamente a seguinte cronologia:
- Em 1800 um destacamento do Exército Português, se instalou para garantir a posse da terra.
- Em 1850 a Ilha abrigou uma base da Marinha Inglesa, para combater o tráfico de escravos negros.
- Em 1885 a Ilha passou a ser denominada Freguesia do Senhor Bom Jesus da Ilha dos Porcos.
- Em 1902 foram desapropriadas cerca de 412 famílias, para dar início a construção do projeto do arquiteto Ramos de Azevedo, da Colônia Correcional, destinada a recolher os “homens bêbados e os considerados vadios”.
- Em 1908 foi inaugurada a “Colônia Correcional do Porto de Palmas”.
- Em 1914, com a difícil e dispendiosa manutenção, a Colônia foi desativada e os internos foram transferidos, para a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté e para o Instituto de Reeducação de Tremembé no Vale do Paraíba.
- Em 1926, o Governo Paulista, após expulsar os caiçaras que haviam ocupado a Ilha, enviou 2.000 imigrantes colonos búlgaros, fugitivos da Revolução Russa, que estavam abrigados em São Paulo, para a Ilha, que tentaram nela sobreviver, Porem sem saber distinguir nas plantações nativas indígenas a colheita certa, morreram 151, envenenados com mandioca brava de fazer farinha, com isso, o governo mandou-os de volta à sua pátria.Veja uma homenagem a eles.
- Na década de 30, as edificações do presídio passaram por uma reforma, com o intuito de receber presos políticos da ditadura Vargas, tendo ocorrido uma revolta em 1933, em que cerca de cem presos depredaram as instalações e tomaram o controle da guarda. Contudo, a situação foi controlada, não havendo mortos.
- A Ilha foi chamada de “Ilha dos Porcos”, que era um nome de cunho pejorativo, que durou até 19/03/1934, quando da comemoração do quarto centenário de nascimento do Padre José de Anchieta, a Ilha passou a se chamar “Ilha Anchieta”, e o presídio “Instituto Correcional da Ilha Anchieta”.
- Os prisioneiros políticos protestaram e foram transferidos para a Penitenciária, enquanto os detentos comuns desta, obrigados a cederem suas vagas, foram encaminhados para a Ilha Anchieta, que passou a ter presos de alta periculosidade, menores infratores, incluindo aqueles sem nenhum processo, muito menos condenação, os considerados “vadios”.
- Em 1945, chegou à ilha outro grupo de presos políticos, chamado “Shindo Romei”, idealistas japoneses que durante a segunda grande guerra mundial, executavam seus compatriotas aqui mesmo no Brasil, por considerá-los amigos dos brasileiros e, por conseguinte, traidores do Japão, nesta época a população carcerária da Ilha chegou a 950 detentos.
A partir de 1946, durante três anos, 170 imigrantes japoneses estiveram confinados nessa ilha-prisão. Na época, houve conflitos entre os nikkeis envolvendo os “kachi-gumi”, que acreditavam na vitória do Japão e os “make-gumi”, que reconheciam a rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial, chegando até a ocorrer vários assassinatos.
Como comparação, a prisão federal de segurança máxima situada na Ilha de Alcatraz, Califórnia, Estados Unidos, ficou famosa por ser uma ilha-prisão de onde é impossível escapar e foi até tema de um filme “Alcatraz – Fuga impossível”. A colônia penal da ilha Anchieta poderia ser considerada a versão brasileira de Alcatraz, situada no litoral norte de São Paulo.
Cada episódio desta epopeia é detalhado nas várias publicações e documentários produzidos ao longo do tempo, mas nesta matéria daremos foco a um deles apenas, que foi a sangrenta rebelião de 20 de junho de 1952 na colônia penal:
Na época a colônia Penal do Porto das Palmas, como era conhecida, 451 detentos se rebelaram, tomaram conta do presídio, fizeram reféns e instauraram o terror no local.
Saldo oficial do motim: 28 mortos, seis desaparecidos e 24 feridos. Há suspeitas, contudo, de que o número de vítimas fatais seria muito maior. Alguns prisioneiros, por exemplo, teriam sido devorados por tubarões enquanto tentavam alcançar a nado a costa da cidade de Ubatuba. Por conta desta polêmica outros historiadores, relatam pelo menos 118 mortes (110 prisioneiros e 8 carcereiros), sendo considerado o pior motim da história prisional do Brasil moderno, sendo superado apenas em outubro de 1992, com o Carandiru, que resultou na morte de 111 detentos.
A revolta começou na manhã daquele 20 de junho de 1952, uma sexta-feira.
Por volta das 8h10, mais de cem presos iniciaram uma caminhada rumo ao Morro do Papagaio, para cortar lenha. Eram escoltados por dois soldados do Destacamento Policial da Força Pública e por dois funcionários civis, também armados. Chegando ao morro, que ficava a uma boa distância do presídio, os condenados que tinham o regime semiaberto, começaram a realizar sua tarefa costumeira. Despreocupados, os guardas nem chegaram a perceber que os prisioneiros começavam, sorrateiramente a se separar em grupos.
De repente, o preso João Pereira Lima berrou e se atirou sobre um dos soldados. Era um sinal de comando. Em poucos minutos, os quatro funcionários estavam mortos e seus fuzis em poder do bando. Certos de que não haviam sido notados, apanharam alguma lenha e seguiram direto para a Casa de Armas, onde apunhalaram o sentinela e se apoderaram-se de 80 fuzis, quatro metralhadoras, munição e granadas. Dividiram-se, então, em dois grupos:
Um seguiu para o presídio, e o outro para a casa do Capitão Fausto Sadi Ferreira, diretor da Colônia Penal. No interior da prisão, a ação foi fulminante: três guardas foram fuzilados e dois funcionários civis, um deles o chefe da Disciplina, foram massacrados pelos rebeldes.
O capitão Sadi recebeu os presos a bala. Como tinha muito menos armas, não demorou para que o diretor se rendesse e saísse de casa, juntamente com um sobrinho, de mãos para cima. Foi então que Pereira Lima teve uma atitude surpreendente. Um dos detentos gritou: “Vamos matá-lo”. O chefe do motim falou: “Em prisioneiro, ninguém põe a mão. Quem tocar no Capitão Sadi será morto. Sua vida está garantida”, ameaçou o líder do motim.
Pereira Lima ordenou que mulheres e crianças fossem para as celas. Outro prisioneiro sugeriu que as mulheres fossem “usadas para coisas melhores”. O líder também as salvou. “Quem puser as mãos em uma delas morre! Não somos um bando de tarados. Queremos só a liberdade”, avisou.
Resistência
Antes de partir, os detentos ainda saquearam o presídio, destruíram os arquivos, queimaram o almoxarifado e retiraram de um cofre mais de cem mil cruzeiros, dinheiro da época. Alguns detentos embriagaram-se em seguida, mas a maioria rumou para o píer onde estava atracada a lancha Carneiro da Fonte, com capacidade para 60 pessoas. Naquele e em outros barcos menores, os fugitivos tentariam navegar para a Praia da Enseada, em Ubatuba. Depois planejavam atingir Cunha na Serra do Mar e Parati, no Estado do Rio.
A fuga dos rebelados encontrou uma inesperada resistência, a do prisioneiro Faria Júnior que era condenado a 43 anos, 17 dos quais cumpridos, pois ele se opôs à fuga e se ofereceu ao diretor para combater a rebelião:
“Dê-nos armas que impediremos a fuga. Somos mais de 200 fiéis à administração. Confie em nós”, propôs ao capitão Sadi. O diretor do presídio e o tenente Oduvaldo Silva, comandante do destacamento militar da ilha, aceitaram a proposta. Sessenta presos foram armados e o tiroteio recomeçou.
Os fugitivos já estavam na praia, a maioria nus, com exceção de Pereira Lima, que se encontrava vestido de tenente. Com o tiroteio, a afobação tomou conta de quem fugia e o desespero para pegar a lancha foi geral. Muitos morreram na tentativa.
Ainda assim, aproximadamente 120 prisioneiros conseguiram escapar, muitos fugindo para cantos da própria ilha, outros lançando-se ao mar em canoas e reboques. Alguns prisioneiros morreram em combate contra os colegas fiéis às autoridades e outros foram abatidos no atropelo da fuga. Pereira Lima foi atingido de raspão, com um tiro na testa.
Captura
As autoridades no continente não foram avisadas de imediato sobre a revolta, pois o rádio do presídio não funcionava havia dias. A deficiência de energia, a mudança brusca de voltagem e o péssimo serviço de comunicação com São Paulo ou outras cidades facilitavam qualquer fuga.
O alerta foi feito por um soldado que, fugindo dos bandidos, conseguiu nadar nove quilômetros de mar e atingir a Praia da Enseada.
De lá, comunicou o ocorrido a Caraguatatuba, que avisou São Paulo.
Imediatamente, soldados de São Paulo partiram para o litoral Norte, sob o comando do Coronel Hidalgo, que se juntou ao delegado Mário Centola, do Dops paulista.
O policiamento das estradas que davam acesso à região foi reforçado imediatamente e as buscas pelo litoral tiveram início. Tropas paulistas e cariocas fecharam o cerco nas Cidades vizinhas a Ubatuba. A Polícia Marítima de Santos foi designada para patrulhar o mar e 90 fuzileiros navais chegaram a Parati. O Coronel Hidalgo e o delegado Centola desembarcaram na madrugada de sábado na ilha, sem saber ao certo o que lá iriam encontrar, pois não possuíam qualquer meio de contato prévio com o presídio.
Presos foram capturados no continente e até mesmo na ilha. Três foram baleados e outros barbaramente espancados. Já domingo, dia 22 de junho, já haviam se rendido na ilha seis fugitivos e em Ubatuba, 25. Em Parati, até as 12 horas de segunda-feira, dia 23, sete evadidos apresentaram–se às autoridades, inteiramente nus, sofrendo com o frio e a fome.
No dia 28 de junho, Pereira Lima foi localizado na região de Parati, chefiando 60 companheiros.
De 1952 a 1955, a ilha sediou um Fórum, com Juiz, Promotor e 20 advogados, com a finalidade de julgar os presos capturados. E em 1955, o presídio da Ilha Anchieta foi desativado e os presos transferidos para a Casa de Custódia de Taubaté, presídio de segurança máxima.
Foi uma rebelião histórica, noticiada em todo mundo e hoje quem visita o presídio tem acesso as informações sobre a construção das edificações, dos presos que lá estiveram, o plano de fuga e a como aconteceu a rebelião.
Em 29 de março de 1977, a ilha passou a ser área de proteção ambiental, com a criação do Parque Estadual da Ilha Anchieta. Desde então é área turística e ambiental que recebe milhares de turistas todos os anos. No local foi também instalado uma unidade do projeto Tamar, de proteção as tartarugas marinhas. É um triste episódio nos anais da história de segurança pública brasileira, que pode ter influenciado tantas outras rebeliões que acontecem no sistema prisional até os dias atuais.
Bibliografia/Fontes:
- Ferreira, Dirceu Franco – PRODUÇÃO DA DELINQUÊNCIA E REBELIÃO: A FUGA DE PRESOS DA ILHA ANCHIETA EM 1952, Universidade de São Paulo – 12/2017, São Paulo
- MIgalhas – Rebelião da Ilha Anchieta marcou história prisional no Brasil por brutalidade, Janeiro 2017, Ribeirão Preto SP
- Zanderigo, Cláudia Albuquerque – Morte no Paraíso, JÁ-Diário Popular 9/3/1997, São Paulo
- Fukasawa,Masayuki e Hasegawa,Laura – Anchieta: a ilha-prisão palco de inúmeras tragédias, Discover Nikkei Jan 2015, Los Angeles, USA
- AMARAL, ANA LUIZA CASTRO DO – O LEVANTE QUE PAROU UMA ILHA, UniRio 2017, RJ
- Oliveira, Tenente Samuel Messias de – Ilha Anchieta – Rebelião, Fatos e Lendas, Editora do Autor, 2011, São Paulo
Coraçoes sujos é o livro de Fernando Morais, que narra a história do Shindoo-remmei. Mto interessante.
Visitamos a Ilha Anchieta, né Amaral?
Valeu!
É verdade Fuka. Durante a pesquisa para a matéria passei por este livro, mas não foi possível incluir a história, pois o post ficaria longo demais. Acho que merece uma matéria exclusiva. De fato visitamos a ilha. Pelo menos estive por 3 vezes lá, sempre pela Xerox. Obrigado pelo comentário e forte abraço/Amaral
Legal Amaral. Paz
Pimenta